“...por algum tempo desisti de escrever; há um excesso de verdade no mundo – uma superprodução que aparentemente não pode ser consumida!”Otto Rank*
Em tempos de barulho mental e extrínseco, a inspiração, essencialmente furtiva, que nasce dos momentos de contemplação e introspecção, dos arquétipos do homem órfico e narcísico, parece ter perdido, definitivamente, a vontade de resistir. Ou perdeu a resistência de desejar.
Quando falta vida interior, sobeja vida pública. Daí porque a inspiração vem sendo atropelada pelo fôlego, pelo vigor, pela transpiração, em suma. Pelo desfile. É preciso mostrar serviço, é preciso suar para receber o prometido, no final do mês, pelo patrão. Hoje, importa mais a espessura das cariátides do que os saraus no interior do palácio. Enfim: falta arte, mesmo.
Tenho visto jovens suarem copiosamente enquanto hachuram um decassílabo ou um alexandrino, este menos comum – porque assim já é demais: a cesura vence os preguiçosos. Fazem da forma um fim e não o meio. Esquecem que o intuito do metro é facultar o ritmo e a cadência, tão somente. Se se consegue ritmo e cadência sem versos isométricos e isotônicos, por que usá-los? Para ganhar nota 10 no boletim? O versilibrismo é tão fascinante e imprevisível, se bem realizado... Ou seja, trata-se de futebol perde-ganha, não mais de futebol-arte. Não se joga mais para os lados, não se perde tempo fazendo beleza, fazendo graça, entortando as pernas do “inimigo”, ou vesgos os leitores, com tal ou qual epifania.
É possível resumir, muito resumido mesmo, a poesia de hoje no Brasil, em dois tipos bem distintos um do outro. O primeiro ainda é o rebotalho da patologia oswaldiana, que ganhou eco em Leminsk, foi virando poeira urbana, cada vez mais urbana, e o que mais há nas cidades é propaganda e lixo – uma tautologia, portanto. Uma poesia feita de achados (e perdidos), de insights, de idéias divertidas. Publicidade, eu diria. Trocadilhos, joguinhos de palavra, lirismo de pavio curto. Esse tipo de poesia abriu caminho para não-poetas e letristas de canção popular, abusando do que vulgarmente denominaram “licença poética”. Diarismo feminino versus ironia masculina. Pulsos cortados e cinismo valdevinos. Ana Cristina Cesar (versão tupiniquim de Silvia Plath e Anne Sexton, dando emprego a Armando Freitas Filho) versus Cacaso, e por aí vai, até desembocar em nomes de hoje, os quais não pretendo citar – mas preciso registrar a existência de um “coletivo” vergonhosamente ruim, com a capacidade de enrubescer o público, tamanha a adolescência do trabalho e a pretensão pequeno-burguesa e pseudo-crítica de bananas de pijama: Muito Barulho por Nada, grupo baiano formado por não-poetas (que reclamam do Tio Sam, enfiados em tênis All Star, tocando guitarra elétrica, fazendo rock and roll – ruim – e usando os programas de Bill Gates em suas apresentações), certamente, e sim, por leitores de letras traduzidas da revista Bizz, e consumidores de muita música popular brasileira “moderna” – leia-se paulista. Jovens de classe média, sem um mínimo de inspiração e com o máximo de modismo nas roupas e no comportamento, reclamando da vida, de barriga cheia – cheia de Pizza Hut e Big Mac.
O segundo tipo de poesia é a que nasce dos alfarrábios e tratados de versificação. São jovens poetas com mais vocação para Advocacia do que para Arte, e que tentam, a todo custo, e sempre truculentamente, convencer o leitor a partir de idéias gestadas por uma calculadora de sílabas. Tudo engessado, poemas que passam por uma profusão de cirurgias, todos com a cara da Gloria Menezes, tudo esticado, doendo. E em geral são jovens, muito jovens, fazendo uso de botox, silicone e se submetendo a cirurgias tão cedo, para fugirem, talvez, do complexo de Peter Pan – ou de Portnoy, a doença judaica, criada por Philip Roth. Querem ser adultos, mas em forma. Querem ser levados a sério, e levam tudo a sério. Mal humorados sempre, andam a perder a compostura com toda a compostura do mundo, em tolas contendas literárias regadas a “tus” e “vós” (sem uma correta concordância, diga-se), e a palavrões do tipo “nefelibata”, “histrião”, “doidivanas”, “rábula” etc. (embora, em algum momento, percam completamente a tramontana, como um deles diria, ao chamar o oponente de “jumento”, por exemplo)... Empolados, escrevem até e-mails pensando em uma futura publicação de sua obra epistolar. São poetas com livros nas costas, em fotos onde eles aparecem com pose de velho escritor, um tanto cansado do ofício, mas “o dever me chama”... O sonho desse tipo de poeta é morrer de tuberculose.
Os tipos de poesia que vejo hoje, no Brasil, são, portanto, o pop e o erudito, ainda que não sejam nem uma coisa nem outra, em algumas ocasiões. O equilíbrio morreu em 1980 , e se chamava Vinícius de Morais. O poetinha fez tudo o que tinha direito. Há poema para todo tipo de leitor. Há rigor na forma, sem fazer do conteúdo um acessório. Sonetista com precedente apenas em Camões, em língua portuguesa, é autor da Rosa de Hiroshima e de um dos mais populares livros de poemas para crianças, A arca de Noé, todo musicado, pouco depois da publicação. Ou seja, do pop ao erudito, Vinícius de Morais ensinou o que é poesia em cada poema que escreveu. Poeta completo, inspirado, mas sempre um trabalhador, um carpinteiro do verso – verso que já nascia iluminado, contudo.
Além de Vinícius, morreu Mário Quintana. O poeta gaúcho, com um verso apenas, consegue destronar toda a obra de um Bruno Tolentino – que é um monumento, sem dúvida, e está entre meus poetas prediletos, mas não é poeta para todas as ocasiões, e em muitos momentos enfatua – por exemplo, e mais ainda a de um Alexei Bueno ou Ivan Junqueira, o primeiro, pródigo em versos engessados e em lirismo medido. Quintana estreou com um livro de sonetos irretocável (A rua dos cataventos, livro com sonetos memorizados por toda uma geração, assim como o poema Infância de Paulo Mendes Campos, seu contemporâneo), e depois criou seu estilo definitivo, com versos muito simples – e as famosas historinhas que ele contava, em livro de poemas - perceptíveis a um leitor preguiçoso de poesia, mas também profundos e fascinantes, perceptíveis a um leitor contumaz de poesia, ou à crítica especializada.
A Bahia, ironicamente, vem produzindo poesia de muito baixo nível. Ironicamente porque se trata da terra de grandes poetas, terra primeira, onde nasceram e/ou viveram Gregório de Mattos, Castro Alves, Junqueira Freire, Arthur de Salles, Sosígenes Costa, Godofredo Filho, Carlos Falck, Carlos Anísio Melhor, Afonso Manta. Certamente há muitos poetas ruins porque jamais se publicou tanto, afinal, sabemos que sempre houve muitos homens escrevendo a lápis em seus quartos de alcova.
Duas “instituições” são responsáveis pelo imenso e barato saldo de livros de poesia, de 1990 para cá: O Selo Letras da Bahia, criado na gestão de Paulo Gaudenzi, quando Secretário de Cultura; o Prêmio Copene de Poesia, atualmente Prêmio Braskem, instalado na Fundação Casa de Jorge Amado, apenas para autores inéditos. Livros à mão cheia, quase todos ilegíveis. Impublicáveis, portanto.
Dessa experiência baiana de facilitação ou investimento na publicação de livros de poemas, chegamos, fatalmente, a um dilema: até que ponto é realmente interessante ou inteligente abrir as portas, ceder à democracia da manifestação de poetas, por meio de árvores abatidas? Os editais da gestão de Marcio Meirelles tornaram o trâmite mais rigoroso, de fato, evitando o excesso de publicações, sobretudo de publicações ruins. Mas não erradicou apadrinhamentos. Os poucos livros de poemas, publicados pela Funceb, nos últimos quatro anos, são de autores que escrevem mal, mas se relacionam bem com os estagiários do poder público. Edições caras, bem cuidadas, escondem em seu bojo versos que jamais seriam publicados por uma editora, não fosse o considerável dinheiro injetado por uma instituição pública.
Finda-se mais uma gestão pública em cultura, na Bahia. Nenhum grande poeta, dentre os jovens poetas baianos. Os melhores, dos que li, estão em Itabuna, Ilhéus, Feira de Santana – o poeta Gustavo Felicíssimo é o responsável pela minha leitura desses poetas de “fora”. Em Salvador, as mulheres vêm escrevendo melhor que os homens. E enquanto nada ou quase nada se escreve de relevante, pululam as mesas-redondas, a divulgação da poesia ruim, o trabalho dos chamados agitadores culturais, que costumam ser aquelas figuras sem talento senão para agregar pessoas. Vivemos o tempo do produtor, do marchand, do agente literário. O cotidiano que suicidou Maiakóvski, Iessiênin, Blok (integrantes da Geração Que Esbanjou Seus Poetas, segundo famoso artigo de Roman Jakobson, publicado em 1931), dentre outros poetas russos, não consegue mais suicidar ninguém, afinal, já estão todos mortos mesmo. Apenas paisagem: a vida interior, a única que consegue fazer poemas, anda distribuindo panfletos pelas churrascarias e cafés da cidade, numa revolução da jogada individual – a partir do coletivo, das campanhas por prefácio e amizade entre aquele que lê o poeta que escreve e o poeta que escreve àquele que lê –, da fortuna crítica e dos patronímicos.
Sob a espessura das cariátides, continuo lendo João Carlos Teixeira Gomes – seus sonetos sosigenianos precisam ser redescobertos –, Florisvaldo Mattos e Myriam Fraga, para citar apenas os vivos. Ildásio Tavares parece ainda não estar morto. Segundo o filósofo e crítico de literatura brasileiro Benedito Nunes, poesia é um fenômeno anacrônico, hoje. Não vivemos em tempo de poesia. A poesia continua viva: o tempo é que morreu. Ou antes, não nasceu de novo, ainda. Dos baianos mortos, escolho Carlos Falck, Carlos Anísio Melhor e Afonso Manta. Lá atrás, Gregório e Castro Alves são os mestres da poesia que continua, sobre as cinzas das horas.
Mas nós, baianos, não somos o povo escolhido pela peste: o Brasil perdeu, definitivamente, o equilíbrio poético em 1980. Afinal, como entender os festejos nacionais – leia-se paulistas e cariocas – pela poesia de Fabrício Corsaletti e Marcos Siscar, recentemente integrantes de uma lista da revista Bravo! e Cult, que assinalava o que havia de melhor em literatura nos últimos dez anos? Abaixo, exemplos da poesia desses dois poetas brasileiros. Excessivamente vivos.
Sabia?
Marcos Siscar
há coisas de sobra que não se dizem
há coisas que sobram no que se diz
nossa miséria é uma alegria de palavras?
Se eu fosse realmente sério
nunca fui a Paris
a New Orleans
a Santiago de Chuco
mas sei que deveria
partir agora mesmo
para Cavalo Queimado.
Fabrício Corsaletti, in Esquimó, Cia. das Letras, 2010.
* Otto Rank foi um psicanalista, escritor e terapeuta austríaco nascido em Viena, no dia 22 de abril de 1884. Morreu em New York, no dia 31 de outubro de 1939
Gustavo Felicíssimo, ahaum? Vc deve escrever com um imenso espelho na frente, nu e se masturbando. Evoé!
ResponderExcluirGrande poeta de Cristo, pacifista, amante do amor ás pessoas, homem que perdoa e que prega o perdão, a paz, a tolerância. Valeu pela sua presença por aqui, comentando texto de Henrique Wagner. Só não entendi uma coisa? o que é isso de se masturbar? Não sei, não entendi... Vc quer dizer "punheta" mesmo? Acho que não... Um cara voltado para Cristo, atualmente, não atacaria as pessoas desse jeito, publicamente... Beijo, Geraldo, te amo!
ResponderExcluirSátiro Pennafort
Geraldo, vc é mais um cristão degenerado. Está sempre falando em sexo. Sem problemas com o tema, que é muito bom. Mas vc, quando fala em sexo, é sempre com uma conotação negativa, é sempre de forma truculenta. Que tipo de Cristianismo é o seu? O que vc vem aprendendo com Cristo??? Sexo é muito bom, é saudável, faz realmente bem. Mas parece que não fez nem faz bem a vc. Será que vc foi abusado sexualmente na infancia? Apesar de estar com o pé na cova, ainda há tempo de resolver problemas dessa natureza... Quanta grosseria, rapaz! E sempre com sexo...
ResponderExcluirJulhinho de Adelaide