quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Haverá Brasil sem esperteza? [por Cazzo Fontoura]

E foi por causa de uma característica do Pelé, quando jogador, que eu tomei gosto pelo Brasil. Mais do que a genialidade de seus gols e dribles, o fascínio me preenche até hoje quando vejo lances em que o Rei faz tabela com as canelas do adversário para seguir adiante na jogada. Se me recordo dessa doce malandragem me pego sussurrando, distraído, o Hino Nacional. No jogo de bola a esperteza faz paralelo diferencial à inteligência. Porém, tal peculiaridade retirada das quatro linhas dá ao Ricardo Teixeira esta vitalícia presidência na CBF. Temo, daqui a alguns anos, meu filho me perguntar se o sujeito é o dono da Instituição.

Faz-me rir o estardalhaço de povo e mídia diante do aumento do salário dos parlamentares. Não é que haja escárnio na minha risada. Como bem disse Eduardo Giannetti, somos um país de progressistas, estamos sempre muito indignados com a indecência das nossas instituições políticas, com a defasagem de nossas escolas, com a calamidade de nossos hospitais. Porém, foi preciso um almofadinha – desses que se formam em Administração –, num misto de indignado e irônico, me dizer que “sim, o aumento é absurdo, mas se a gente tivesse lá seria ótimo.” Sim, o almofadinha tem razão. Nossa moral é pautada numa só instituição que não há humor que abale suas estruturas: a esperteza.

O aumento que teve o inevitável e constitucional efeito cascata serviu mesmo como referência de como fazer a cínica cara certa na hora da esperteza. Em entrevistas, os parlamentares que votaram, em tempo recorde, a favor de si, defenderam o reajuste de maneira sucinta, consistente e civilizada. O aumento justifica sim nossas sagradas falcatruas de cada dia.

A questão é que para obtermos esta aula de cinismo não precisamos recorrer apenas a nossos representantes políticos. A esperteza do pedinte que faz cara de fome dentro do ônibus – que nesse momento se transforma numa Tribuna de Julgamento Moral – é a faceta sem gravata e paletó do espírito nacional que nos aflige. E, nós, enquanto passageiros, que só nos damos por convencidos da desgraça alheia se o pobre diabo, ao sair do coletivo, mantém intacto o semblante flagelado, sentimos revolta – quase passeata – se, horas mais tarde, encontramos esse mesmo miserável de cara limpa, usando a esmola adquirida para fumar “pedra”. Embora íntegros progressistas que somos, num ímpeto de fascismo, desejamos a morte do mendigo.

A grande diferença entre a esperteza do sujeito que fora eleito democraticamente e do outro que simula a fome está em nós, que para encobrir nossos roubos sutis condenamos os espertos das classes distintas. Sentimo-nos menos corruptos porque fazemos “bode” na internet, porque fazemos “gato” na energia elétrica e chegamos a demonstrar cinismo parlamentar quando adquirimos TV a cabo na base do desvio. Adiposas senhoras e adultos que nunca foram à escola pagam meia-entrada em shows, teatros e estádios de futebol.

Somos tão impregnados pela lógica do “se dar bem” que dia desses soube de uma faixa exposta em várias avenidas do Rio de Janeiro com os seguintes dizeres: “Conheça quanto você pagará para quem irá trabalhar no Natal e no Réveillon em Copacabana. Cantor Roberto Carlos: valor não divulgado. Cantor Luan Santana: R$ 1.300.000,00. Cantor Zeca Pagodinho R$ 650.000,00. Policial Militar R$ 30,00 (salário/dia). Bombeiro Militar R$ 30,00 (salário/dia).” Admito que diante de tão discrepantes números, por algumas horas, defendi, justifiquei, fervoroso, a corrupção da polícia.

Pois é com esta falsa justificativa de nos sentirmos compensados que levamos adiante de maneira muito tranqüila, quase sem sentir, a nossa moral da esperteza. Se burlamos o preço de um determinado produto numa loja, justificamos a atitude na certeza de que o dono do estabelecimento sonega um ou outro imposto e dessa maneira este sonegador assim age porque sabe que o Estado é corrupto e por isso não quer ser passado para trás. E desgraçadamente nessa bola de neve a vida brasileira segue seu rumo, onde o fim que justifica os meios ganha contornos diabólicos, não-maquiavélicos.

Meu suspiro de alívio, alguma crença de que as coisas podem, de fato, mudar, é quando vejo e ouço o bem votado Deputado Federal Tiririca vibrar com o gordo reajuste da remuneração: “Cheguei num dia bom.” Enfim, alguém fala sério neste país.

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