Décadas depois de desancado por Lima Barreto e Graciliano Ramos, como coisa de gringos e burgueses, o futebol acabou chegando ao campo das discussões acerca da identidade brasileira. Fátima Antunes, por exemplo, elaborou "uma reflexão sobre a sociedade brasileira, na tentativa de compreender como ela se via e quais ideologias criou a respeito de si própria, tendo o futebol como paradigma da identidade nacional". Há quem ache que a tese é válida para todos, como Giulianotti: "Em qualquer lugar, o futebol nos fornece uma espécie de mapa cultural, uma representação metafórica, que melhora a nossa compreensão daquela sociedade... Sua centralidade cultural, na maior parte das sociedades, significa que o futebol tem uma importância política e simbólica profunda, já que o jogo pode contribuir para as ações sociais, filosofias práticas e identidades culturais de muitos e muitos povos... a difusão do futebol de um lado a outro do mundo possibilitou que diferentes culturas e nações construíssem formas particulares de identidade por meio de sua interpretação e prática de jogo". E se isto vale para o mundo inteiro, pensa o torcedor brasileiro, vale muito mais para o Brasil, "país do futebol".
Dizia Roberto DaMatta, tempos atrás: "No caso brasileiro, foi indiscutivelmente através do futebol... que o povo pôde finalmente juntar os símbolos do Estado nacional (a bandeira, o hino e as cores nacionais), esses elementos que sempre foram propriedade de uma elite restrita e dos militares, aos seus valores mais profundos. Ainda é o futebol que nos faz ser patriotas, permitindo que amemos o Brasil sem medo da zombaria elitista... Além disso, o futebol institui abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura como estilo nacional. Mas sem excluir a capacidade de jogar com técnica e força. Foi, portanto, só com o futebol que conseguimos, no Brasil, somar Estado Nacional e sociedade. E, assim fazendo, sentir, pela avassaladora e formidável experiência de vitória em Copas do Mundo, a confiança na nossa capacidade como povo criativo e generoso. Povo que podia vencer como país moderno, que podia, também, finalmente, cantar com orgulho o seu hino, e perder-se emocionado dentro do campo verde da bandeira nacional".
E o cientista político Luis Fernandes, que considera o futebol "um dos pilares da nossa identidade nacional", em prefácio à mais recente edição do clássico de Mário Filho: "Para além das paixões clubísticas, a democratização da prática do futebol, materializada na ascensão de jogadores negros e mestiços, permitiu que esse esporte viesse a ocupar posição central na construção da identidade nacional. Na ausência de um maior envolvimento brasileiro em guerras - matéria-prima para a construção de fronteiras de identidade na formação dos estados nacionais unificados da Europa - o futebol forneceu um simulacro de conflito bélico para o qual era possível canalizar emoções e construir sentidos de pertencimento nacional... Do Estado Novo de Getúlio ao regime militar, passando pela República Democrática instalada em 1945, todos os regimes que governaram o Brasil durante o seu ciclo nacional-desenvolvimentista exploraram a chave do futebol para ajudar a construir e consolidar a nossa identidade nacional. Em oposição ao racismo aberto das velhas oligarquias, o novo discurso oficial passou a valorizar a mestiçagem, associando-a aos sucessos de uma 'escola brasileira' de futebol, que expressaria a nossa singular maneira de ser no mundo, marcada pela criatividade, flexibilidade, informalidade e sensibilidade plástica".
Há quem discorde. Como Hélio Sussekind, que, ao se perguntar se o futebol contribui para a construção de uma identidade nacional, responde com um sonoro não. Sussekind acha que futebol é dissensão. A violência é uma das suastrade marks de esporte desagregador. Mesmo em partidas do escrete canarinho, a torcida não estaria ali para festejar a seleção, mas jogadores de seus times de preferência. Afirma, ainda, que o futebol não pode contribuir para uma construção porque não constrói nada. "No que se refere à construção de uma nação, ao fortalecimento de uma identidade nacional, não há o que esperar do futebol. Nunca é demais reforçar que ele é incapaz de produzir o que a sociedade não tenha experimentado antes".
A postura é insustentável. Como dizia Nelson Rodrigues, "o escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós". O povo torce pela seleção. Em estádios do Paraná, de Minas Gerais ou de Pernambuco, ainda que sem qualquer jogador local em campo, pessoas enchem as arquibancadas - aplaudindo, inclusive, jogadores de times que detestam. O que se quer é ver o Brasil vencer. Mas não é isto o mais importante. O problema é que Sussekind pensa a identidade em termos horizontais e circunscritos: se a platéia se divide em torcidas rivais, não há identidade possível. Mas não é nesse plano que a identidade se forma. Ela acontece na dimensão da similaridade e não no eixo da contigüidade. Se torço pelo Fluminense e você pelo Flamengo, estamos divididos no estádio - mas não são o Flamengo e o Fluminense que criam a identidade: é o torcer. Além disso, identidade nada tem a ver com laços fraternais. Numa rua do Rio, o bandido que dispara a arma e a vítima que cai agonizando pertencem ao mesmo campo de cultura. Por fim, uma forma cultural, para integrar o conjunto de elementos que compõem a identidade de um grupo ou a de uma nação, não tem de produzir obrigatoriamente algo "que a sociedade não tenha antes experimentado". É quase o contrário. Embora mutável, a identidade é sempre mais um estar-aí do que um vir-a-ser.
Antonio Risério é poeta e antropólogo, autor de, entre outros, "Textos e Tribos" (Imago, 1993), "Avant-Garde na Bahia" (Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995) e "Fetiche" (Fundação Casa de Jorge Amado, 1996).
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