quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Ponto de Encontro: FHC e Eduardo Giannetti.



Pois bem, este primeiro Ponto de Encontro – que se dá em significativos fragmentos de uma entrevista de Fernando Henrique Cardoso, concedida ainda este ano à Revista Dicta e Contradicta, entrelaçada aos vídeos da palestra do professor Eduardo Giannetti, em comemoração a um ano do lançamento da mesma revista – tem, por base, a imprescindível temática: Há pensamento sério no Brasil?

Ambos os intelectuais, provocados a tocar neste assunto, abrem e ratificam a discussão, na incansável busca desta consistência necessária para o crescimento real do país. Sem mais delongas, leiam/vejam o que tem para dizer.

Dedico esta postagem a meu amigo Darlan Gomes, bom sujeito, estudante de História, que, por tantas horas pensa e repensa este sério problema que aflige a vida intelectual do Brasil.

Parece-me que, no exercício da política, você sempre tem convicções, princípios, quer sejam explícitos, quer não. Essas convicções obviamente estão dentro de um espectro amplo; mas talvez pudéssemos separá-las entre convicções de tipo idealista, em que se encara a realidade sempre a partir de um ideal, e, no extremo oposto, uma realpolitik em que o ideal não contaria para nada, só contaria a realidade nua e crua. Como encontrar um meio termo? Na sua experiência, qual seria esse meio termo?

Não é uma pergunta fácil. Veja o próprio Maquiavel, que não era um “maquiavélico” no sentido vulgar do termo. Penso em toda a temática que ele levanta, a do grande homem, do líder, do “príncipe”…

Em todo o caso, você precisa ter um limite entre a ética de convicção e a ética de responsabilidade. E, nesse campo, eu diria o seguinte: não creio que exista um road map, que você possa dizer “vou por aqui”. Sempre há um momento de incerteza, em que você pode acertar ou pode errar. Acredito que o verdadeiro líder, ao mesmo tempo em que tem noção, digamos assim, da calculabilidade dos seus atos e das suas responsabilidades, também tem de ter os seus objetivos, e aí entra o aspecto valorativo. E você vai ser julgado em função dos dois aspectos, vai responder por eles, quer queira, quer não.

Em cada decisão importante não há uma medida certa, há apenas um espaço, quase um vazio. Você se joga na piscina e de repente não tem água; pensa que está fazendo um bem, e pode fazer um mal. Agora, se você não tem a motivação de fazer um bem, se você só se jogar na água quando tiver certeza de que está a piscina está cheia, vira um manipulador.

Penso que todo o líder que transcende não pode ficar só nisso; precisa ter uma convicção, tem de acreditar em alguma coisa. Você não tem uma medida disso do ponto de vista objetivo: é um valor em que você acredita ou não, que quer ou não quer, acha bom ou acha mau. Só que não é possível separar esse argumento de subjetividade de uma análise puramente objetiva.

Quais foram, então, os valores básicos que orientaram o senhor?

No meu caso, o primeiro valor era a liberdade, a democracia. Para mim, isso era mais importante que todo o resto. São coisas banais, mas importantes. E o segundo é a igualdade: perguntar-se a que levam as ações políticas, no sentido de melhorar ou piorar a situação das pessoas, sobretudo das que mais necessitam.

O resto é instrumental; você pode, por exemplo, ter desenvolvimento econômico, mas isso depende de mil coisas. Aqueles dois valores, porém, não são instrumentais: você tem de assegurar a maior liberdade no sentido institucional e pessoal, garantir espaço para que as pessoas se desenvolvam e se manifestem. E depois perguntar-se se as suas políticas estão levando à melhoria objetiva da situação social do país, e se é suficientemente competente para utilizar o instrumental – o crescimento, o desenvolvimento – a fim de fazer isso.


Até que ponto é legítimo que a política leve a sociedade para uma realidade essencialmente diferente daquela que ficou historicamente consolidada? Quanto a política pode mudar e quanto ela deve mudar, tendo em vista a idéia do progressismo e da revolução?…

Acho que, se não tiver uma idéia de que pode melhorar alguma coisa, um projeto, você não avança. E não acho que as coisas se modifiquem por si mesmas, pela sua dinâmica própria. Quer dizer, não penso que a dialética esteja inscrita automaticamente nas coisas, como diz a visão marxista tradicional; penso que é necessário haver sempre uma tentativa de superação. Essa tentativa de superação, entretanto, não pode ser baseada apenas no desejo. E aí entra a questão do cálculo: você precisa ter a capacidade de articular os fatores que estão ao seu alcance para que o resultado se produza.

Nunca se deve considerar que uma situação é satisfatória, porque as aspirações humanas mudam e as condições materiais para alcançá-las não são estáticas, são dinâmicas. Por isso, a política não tem uma resposta única: você tem de ter criatividade, ver a cada momento o que é possível fazer tendo em vista o que você deseja. Obviamente, pode passar pela sua cabeça que só você deseja aquilo, mas em geral o que você deseja, muitos o desejam também, e se o seu desejo não tiver um suporte efetivo na sociedade você não vai longe. O político não é um pregador, é quem faz o caminho. Não dispensa o pregador, deve ter uma pitada de convicção, mas é quem faz o caminho. O tempo todo o político está tentando ver se é capaz de ampliar o caminho, ou de criar um caminho novo para chegar aos seus objetivos.

Outra questão que envolve o estado moderno é a idéia do “Estado como espetáculo”, ou seja, a midiatização cada vez maior da atividade política, como se mostra nos grampos, CPIs etc. É como se o estado não mais desse “o pão e o circo”, mas se transformasse ele mesmo no circo. Isso é inevitável? Até onde vão as conseqüências negativas disso tudo?

O que está acontecendo, e me preocupa, é a própria vida como espetáculo! Porque com isso fica difícil ter um projeto coletivo: quando o Estado e a vida se tornam “espetaculares”, você passa a ter outra coisa – individualidades fortes que expressam um sentimento, mas esse sentimento não precisa necessariamente estar ligado a um projeto coletivo. O coletivo fica como que subsumido pela espetacularidade do gesto, da ação. Como manter, neste caso, a democracia e a liberdade é um problema em aberto.

Na teoria clássica da democracia, a decisão implica em um momento de razão, em uma escolha. Quando você substitui a escolha individualizada por uma emoção coletiva – porque a emoção é coletiva e o ato espetacular é individual –, isso é essencialmente não-democrático. É algo que tem muito mais a ver, como ocorreu no passado, com as estruturas totalitárias, que usavam a espetacularidade como manipulação. Minta, minta, minta que a mentira se tornará verdade. De alguma forma, estamos vivendo num mundo em que a mentira se torna verdade pela repetição, pela iconização do sentido das coisas.

Isso requer uma reflexão nova: Como é possível atuar democraticamente nesse tipo de sociedade? Como será possível utilizar os instrumentos que permitem à sociedade ser espetacular de uma maneira que contenha elementos de razão? Talvez a generalização da internet abra caminho para uma resposta, pois a internet mantém você conectado, embora separado fisicamente; e o comportamento, na sociedade espetacular, requer a presença física para mostrar a espetacularidade, ao passo que a internet fragmenta mais. Se for possível – é uma questão, não sei a resposta –, se for possível haver um sentimento de responsabilidade social, um sentido de compromisso social, embora cada um esteja isolado; se for possível haver uma sociedade que, embora individualista, fragmentada, mantenha, mesmo tempo, o sentimento de que precisa haver alguma forma de coesão social, quem sabe seja possível criar formas políticas novas. Porque o fato é que as estruturas tradicionais, como os partidos, encontram enorme dificuldade para sobreviver à espetacularidade. Na verdade, estão sucumbindo, perdendo força diante do gesto espetacular.

Uma pergunta ampla, e propositadamente ampla: até que ponto a política pode salvar? A política pode levar até onde?

Idealmente, leva para melhor. Você não tem política no sentido forte sem voltar aos gregos, quer dizer, sem se perguntar em que consiste a felicidade dos povos, como se faz a felicidade do povo. A política, em essência, é isso: Como trazer o bem-estar. É preciso voltar a isso.

Um dos pensadores que mais ênfase deu à idéia da cultura como fundamental para mudanças políticas foi Antonio Gramsci. O que o senhor pensa da sua obra?

Gramsci tinha uma idéia específica: para ele, era o Moderno Príncipe, o Partido, quem seria o regenerador dos valores, e ele via esse processo também como manipulação. O partido deveria tomar conta, apropriar-se da cultura. Gramsci teve a perspicácia de perceber, no panorama do mundo marxista, socialista, comunista de então, que não bastava pensar em infra-estrutura e superestrutura. Na linguagem de Marx, a cultura é superestrutura; na verdade, pode-se inverter isso, ela pode ser o fator que conduz, não anda automaticamente como conseqüência mecânica da infra-estrutura. Por isso Gramsci teve tanta importância.

Agora, ele não mudou a visão de que haveria uma determinada classe portadora dessa cultura, dos valores universais. Eu penso de outra forma: no mundo atual, os valores são muito mais difusos, você não pode ter a pretensão de que um setor da sociedade vá primar sobre os demais e deva usar a cultura como instrumento de dominação. Eu tenho uma visão, digamos, mais democrática desse processo.

A partir de um determinado momento, principalmente durante o Regime Militar, o Gramsci foi muito importante para certa parte da política brasileira…

Foi, porque foi um mecanismo da política brasileira entender que a ação pesa.


Então essa idéia de começar uma revolução, entrar pelos valores da sociedade com um objetivo político pode ser positivo?

Em si pode, pode ser positivo. Aqui não foi, não por causa do Gramsci, que não é responsável pelo que fizeram Brasil. E não foi positivo porque alguns grupos, ao invés de tentar ir pela via do convencimento, digamos, gramsciana, foram para a guerrilha.

Mais tarde o PT tentou ser gramsciano, mas não deu o segundo passo, que poderia realmente ser o mais revolucionário. Ou seja, não renunciou à concepção de que o Estado é que vai mudar a sociedade. Eles fizeram quase que um caminho pela cultura, pelo convencimento, para chegar ao Estado, com a idéia de que o Estado depois muda a sociedade, mas isso não se deu, perderam-se. Ficaram com o domínio (provisório) do estado e nada de significativo mudaram na sociedade.

Eu não creio que seja possível imprimir um selo, uma marca cultural, de cima para baixo. A cultura hoje é muito mais viva, muito mais dinâmica, muito mais diversificada e não tão colada aos interesses de um segmento, de uma classe que o Estado possa expressar.

Ainda nessa questão de ideologia, num artigo publicado na Folha de S. Paulo o senhor dizia que a universidade deveria “voltar à vocação inicial de valorizar um método de análise, no qual a pluralidade cultural e a paixão pela pesquisa não ficam submersos na ideologia”, pois, “quando os formadores de imagem [os intelectuais públicos] produzem [as imagens] sem maior conhecimento de causa, orientando-se mais por crenças do que por análises, podem causar dano ao próprio povo”. Como o senhor enxerga a situação das humanidades atualmente nas universidades brasileiras?

Estou bastante afastado do dia-a-dia da universidade, mas a sensação que tenho pelo que me chega – e não é tudo o que me chega –, é que a universidade melhorou muito na qualidade da pesquisa. Mesmo nas ciências humanas a produção é boa, quer dizer, sabe-se mais sobre mais coisas, tem-se mais informação com certo rigor. Para recordar o início da nossa conversa, a sociologia como ciência empírica avançou como um todo: há muito mais conhecimento de situações, formas de regularidade etc.

Porém, quando falamos de intelectuais – entendendo-se por intelectual quem forma uma imagem, quem produz uma visão –, acho que esse aprofundamento da pesquisa não se deu simultaneamente com o alargamento da experiência vital dos intelectuais: como, em geral, os acadêmicos sabem pouco da vida, têm muito pouca ligação com o que acontece no resto da sociedade, acabam produzindo ideologia, distorcendo muito. E a ideologia predominante é uma mistura de marxismo vulgar com um catolicismo popular, os dois pouco sofisticados.

O resultado é, enfim, um saber de segunda categoria, mas que tem efeito porque se multiplica. Se ficasse isolado na universidade, teria um efeito menor; mas essa visão simplificada vai para o púlpito, vai para o jornalismo e acaba indo para o Congresso e para a política. E retorna, porque depois é justificada por esse tipo de intelectuais ideológicos.

Evidentemente, o intelectual tem que ter valores, mas ideologia não é isto, é distorção das coisas por um viés imune aos fatos e à mudança deles. De forma que continuo a pensar que o trecho que você citou continua a se aplicar, sim, mas paradoxalmente sem negar o avanço. É imensa a quantidade de livros que recebo, de teses publicadas. O curioso é que muita dessas pessoas quando vão pensar sobre o movimento da sociedade, comportam-se, não como pensadores, mas como ideólogos.


Pensando num exemplo específico, que é o aumento da criminalidade no Brasil, principalmente a partir da década de 60, não haveria uma relação entre as duas coisas? Ou seja, a ideologização do ensino universitário, e da cultura em geral, não seria paralela à ideologização do crime organizado? Quando faz uma rebelião, o PCC não pede colchões, comida melhor e não ter que usar uniforme; as reivindicações são Paz, Liberdade e Justiça…

Nunca pensei nisso; talvez haja. Agora, quando eles pedem “Paz, Justiça e Liberdade”, isso é da boca para fora. É uma racionalização que encontra legitimidade na ideologia. Mostra que eles perceberam que isso “pega”.

Em A ciência como vocação, Max Weber diz que “A educação científica, tal como, por tradição, deve ser ministrada nas universidades alemãs constitui numa tarefa de aristocracia espiritual. É inútil querer dissimulá-lo”. Essa afirmação não vai totalmente de encontro à idéia que se tem de educação aqui no Brasil?

Bem, ele estava convencido disso. A universidade alemã era isso mesmo. E, de alguma maneira, aqui no Brasil temos uma visão populista do que é a vida intelectual. Esse populismo leva ao horror da diferenciação: se alguém é bom em algo, isso é ruim, porque ficou diferenciado. Mistura-se o que seria diferenciação de origem com diferenciação por você ter aprendido mais, por ter sido competente ou ser melhor dotado.

Ora, a vida acadêmica requer essa meritocracia. Meritocracia não quer dizer privilégio, não quer dizer aristocracia no sentido popular; quer dizer competência, trabalho, mais talento. Se você não valoriza isso, mas valoriza uma falsa homogeneização, não há como desenvolver boa ciência. A meritocracia requer avaliação, por exemplo, e não há nada que horrorize mais um sub-intelectual do que a avaliação, porque ele vai se revelar “sub”. E nada que o horrorize mais do que um verdadeiro intelectual, porque é diferente dele.

Isso é ruim, pois nesse tipo de percepção há uma espécie de populismo que vai contra tudo o que é a vida cultural. É uma atitude que prevalece em certos círculos, mas não leva a nada, apenas ao empobrecimento da vida cultural. A vida cultural, no sentido restrito de cultura, é feita de diferenças, de acumulação. Uns criam mais que outros. Você tem de tirar o chapéu para quem cria; isso não quer dizer que desdenhe quem não cria. Você tem de respeitar as pessoas como seres humanos, dar-lhes condições de igualdade; mas há que diferenciar o percurso de cada um: este aqui fez tal coisa, é bom intelectualmente; já o outro talvez não seja tão bom assim, ou não fez nada… Neste aspecto, não são iguais.

Como o senhor dizia, a cultura em sentido restrito no Brasil de hoje certamente é melhor que há dez anos. Mas parece predominar uma certa apatia, que se mostra por exemplo na falta de debates culturais sérios.

Do ponto de vista da qualidade e da quantidade, certamente é muito melhor o que se faz hoje do que há vinte, trinta ou quarenta anos. É indiscutível. Mas hoje são muito mais raros certos pensadores que havia no passado – e isso não é uma crítica, porque é uma realidade –, que são os maîtres à penser. Na França do meu tempo, havia o Aron e o Sartre, que dividiam entre si a área de ciências humanas. Hoje, não temos mais maîtres à penser.

Os EUA nunca os tiveram. Ali, cada universidade segue a sua linha, as capelas são múltiplas e não há hierarquização entre elas; e nós, aqui, vamos em direção a uma situação como a americana. Com a fragmentação, a formação de capelas específicas, que não se comunicam, não há debate.


Mas nos EUA há debate…

Muito mais do que aqui, mas menos do que na França, no passado. Ou, por outra, não é que haja menos, é que ele é menos orgânico. Mas ser menos orgânico não é grave, porque mesmo assim há. O que é grave, aqui, é que você tem um isolamento sem conversa, a não ser entre um pequeno círculo, que não é de conversa, não é de discussão, é de adoração. Isso, realmente, precisaria ser rompido.

Ainda nessa questão das posições culturais, queria entrar um pouco no que pensa do que se costuma chamar conservadorismo. Há uma primeira dificuldade básica: afinal, o que é isso? A resposta a essa pergunta é muito difícil, e um dos motivos para isso é certamente o desinteresse dos próprios “conservadores” em definirem uma cartilha para o seu pensamento. O resultado é que a opinião que acaba prevalecendo é mais ou menos a descrição feita por John Stuart Mill: “The Stupid Party”. Conservadorismo é apenas o “Stupid Party”?

Penso que no Brasil simplesmente não existe um pensamento propriamente conservador. Não existe. Nem na política há quem se defina como conservador, o que é uma coisa estranha. Talvez tenha havido no passado, mas hoje não há. Como também não há um pensamento oposto ao conservador. Há quase um não-pensamento, girando ao redor do que se imagina que seja uma amálgama de idéias de senso comum: todo mundo quer o bem de todos, todo mundo quer o bem do povo.

Impressionou-me muito algo que ouvi numa tese defendida há muito tempo na USP por uma moça chamada Paula Beiguelman sobre os estilos de pensamento no Brasil. Ela distinguia entre o pensamento “conservador”, o pensamento “democrático” – não me lembro exatamente se era isso – e o pensamento “socialista” no século XIX. “Socialista” entre aspas: Nabuco seria o correspondente simbólico do pensamento socialista, “conservador” seria Honório Hermeto Carneiro de Leão, marquês do Paraná, e por aí ia. A certa altura, um dos membros da banca examinadora perguntou a ela: “Mas será que havia um pensamento conservador, ou era apenas o atraso?” A seguir, acrescentou: “A senhora acha que essa gente leu Burke?” Burke se opunha à Revolução Francesa, mas tinha um pensamento; aqui não leram Burke, não são seguidores do Burke, são apenas atrasados.

Aqui temos o que se chama até hoje de conservadorismo, mas é apenas o atraso. Isso não é conservadorismo; o conservadorismo tem uma filosofia, tem um pensamento diante do qual você pode tomar posição. Aqui, esse pensamento simplesmente não se formula. Ou melhor, são vozes isoladas as que formulam e não encontram apoio político.

Se você perguntar a qualquer político ou jornalista ou o que quer que seja, como ele se qualifica, ele em geral responderá que se qualifica como democrata ou social-democrata – agora, já nem se qualificam mais como de esquerda propriamente dita, porque essa também caiu… –. Aliás, essa esquerda também não tem uma filosofia: qual seria atualmente o pensamento de esquerda no Brasil? Há um vago progressismo democrático, mas não propondo mudança nas estruturas.

Em suma, acho que esse é um problema complicado: a falta de pensamento. As pessoas não procuram justificar por que têm tal ou qual posição. Têm uma posição, e às vezes pensam que são conservadores quando são atrasados; outras pensam que são progressistas e estão também equivocadas. Falta clareza no pensamento: você pode não concordar com o positivismo, mas a clareza é fundamental.

A famosa frase do Santayana: “Quem não conhece história está condenado a repeti-la”…

Exatamente. Ou então, imagina-se que se está inaugurando o que já está devassado há muito tempo. Isso me ajudou bastante. Mas também traz dúvidas, muito mais que o político comum costuma ter.

Essas dúvidas são produtivas, mas, algumas vezes, tornam você muito menos assertivo. Lembro-me de que os meus companheiros políticos, o Mário Covas por exemplo, ficavam loucos no começo, porque eu dizia o que realmente achava aos repórteres que vinham perguntar sobre as pesquisas eleitorais, quando o político tem de dizer: “Eu vou ganhar, eu vou ganhar”.

Você também me perguntou como a política influenciou a minha formação. Sempre me interessei muito, como sociólogo, pelo que é novo, discrepante, emergente. Não tenho paciência com o recorrente, com o que se repete: gosto de ver o que está surgindo. E a política tem muito disso: é sempre o imprevisto. O bonito da política é que não tem regras. A toda hora surge uma coisa nova e você tem de se haver com ela. Isso tem vantagens e desvantagens, porque ninguém gosta do novo, as pessoas gostam do que repete, do que já conhecem; reforma, para a maioria, é conversa fiada, pois ninguém gosta de reforma nenhuma, gosta é de manter tudo como está. Em todo o caso, penso que a política me deu uma motivação maior ainda, mais interesses. Acho que esse sentido da política como algo que irrompe de repente fortaleceu o meu lado sociológico de procurar ver o que vai surgir; espero que me tenha dado uma maior acuidade para ver o que é novo.

Quais são os seus modelos? Os heróis no sentido clássico?

Vamos pensar nos contemporâneos com os quais convivi. Há uma pessoa que é fora de série, mas que não está propriamente dentro dos moldes normais de um grande político: é o Nelson Mandela. Pertenço até hoje a um grupo que ele criou, chamado The Elders. O Mandela é uma pessoa curiosa; estive várias vezes com ele, e o que me impressiona não é tanto o que diz nem o que faz, mas o que simboliza. Ele tem uma aura. Alguns a têm, outros não; eu não posso aspirar a tê-la. O Mandela mostra que há um lado moral na política, que é do comportamento, da virtude – real ou atribuída –, e isso pesa. A sua presença é mágica.

As pessoas com quem tive contato, e que ainda estão vivas, são até bastante diversas umas das outras. Outro que me impressionou muito foi o Helmut Kohl, conservador. Não por acaso fez o que fez na Europa. É curioso, porque aparentemente ele não tem sofisticação nenhuma: parece um camponês, é grandalhão, come muito, só fala alemão, é muito afirmativo. Mas ele tem o sentido da história. Depois que caiu em desgraça, certa vez em que fui à Alemanha telefonei para ele; e, no outro dia, fiquei sabendo que o convidaram para vir aqui debater, e ele respondeu que só debateria comigo porque fui o único presidente que ele conheceu que ligou para ele depois de cair.

Outro é o Bill Clinton. O Clinton tem um pouco dessa aura do Mandela, mas é prático, é realista; tem uma capacidade de sentir o ambiente e dominá-lo que é muito difícil de encontrar. Outro exemplo, mas que é o oposto disso, é o Putin. É um homem baixo, forte, nada simpático, mas você percebe que ali há comando. Enfim, não gosto desse estilo, prefiro o do Clinton, mas são pessoas que têm uma certa radiação.

Se pensarmos em termos históricos, é muito variável. De Roma antiga, há o imperador Adriano. Recentemente, tem aumentado a minha admiração por Franklin Roosevelt. Sob vários aspectos, ele era bastante discutível, por ser excessivamente pragmático; nos EUA, por exemplo, por ocasião das eleições, nunca se sabia se era candidato ou não, pois só se definia na última hora. Mas fiquei muito impressionado quando li a correspondência dele com Stalin; Stalin era rude, grosseiro, e Roosevelt tinha uma paciência infinita com ele. E por quê? Porque tinha um objetivo, que era fazer as Nações Unidas. Portanto, se por um lado era muito manobrista, por outro não era um político banal, tinha propósito. Roosevelt é uma pessoa inspiradora.

Churchill também é inspirador, mas Churchill era outra coisa. Há uma biografia admirável de Lord Jenkins sobre ele. Comparado com Roosevelt, era até mais realista, mas mais corajoso; era um homem para aquela época de guerra, um guerreiro. Durante a Guerra, Roosevelt teve de preparar os EUA; a sociedade era contra entrar na guerra, mas o presidente sabia que seria necessário fazê-lo, e foi fazendo a preparação com muito jeito, o que mostra que tinha paciência e perseverança. Em suma, tinha ideal, paciência e perseverança, qualidades de um grande político.

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