domingo, 23 de janeiro de 2011

Poesia Marginal em questão. [por Amador Ribeiro Neto]


1. Isto: o poeta e sua linguagem


Barthes diante de uma fotografia de Jerônimo, último irmão de Napoleão, disse: “Vejo os olhos que viram o Imperador”. Este espanto ele dividiu com os amigos. Mas ninguém parecia compartilhá-lo. Então Barthes constata: “A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.

A frase mais parece um verso de T.S. Elliot. Um verso, uma linha, uma frase que agarra na gente. Quem é que está ausente destas golfadas de solidão? Ninguém. Mas somente os poetas sabem transpor para a ciranda de signos um sentimento raro e trivial ao mesmo tempo. A ambigüidade é marca registrada da poesia. O poeta, senhor oceânico dos signos, sabe dizer o inaudito, o inaudível, o desdito, o prescrito, o proscrito. O poeta é aquele que se vale da palavra, da cerâmica, da tela, da areia, da luz, do ferro, da madeira, da pedra, da água, do fogo, do silêncio e dos sons para fazer poesia.

O poeta é um fazedor de linguagens. O que ele faz é ouro. Midas das mídias, é sempre um meio entre as extremidades do gozo e do martírio.

Homem do povo, o poeta sabe que nada pode fazer se ignora a língua dos bares, das feiras, dos camelódromos, dos campos, das fábricas, das cozinhas, das vias públicas, das portarias, das fazendas, dos sítios, dos cariris, dos sertões, do agreste, das praias. A língua viva do povo é a melhor matéria e o melhor material do poeta.

Um povo sem literatura é um povo fadado à bancarrota. Uma nação sem poetas está à beira da derrocada. A um triz de ser engolfada por outras nações e culturas mais fortes. A língua do poeta não pode ser a norma culta. Esta norma asfixia a flexibilidade, o molejo, o dengo de “tudo aquilo que o malandro pronuncia”, como pontua Noel.

Por ser tão ímpar, tão inesperadamente singular, por mandar às favas as leis do mercado, o poeta então se atreve cada vez mais na busca de uma linguagem nova. A busca pelo novo, pelo ainda não dito nem escrito, move o poeta.

Na simplicidade do fazer (ou do dizer, já que ambos são a mesma coisa para o poeta) o poeta inaugura outros modos de ser e estar. Outro jeito de corpo. Outra moda, contra a moda.

Por ser inapreensível em todos e em nenhum modelo, o poeta cria sua própria gramática, seu próprio dicionário, sua exclusiva linguagem. Assim, seu produto não obedece às leis do mercado. O poeta vive a golpes de pequenas solidões.


2. Agora: Poesia Marginal


A Poesia Marginal não existe como um movimento, nem como um grupo de poetas com o mesmo ideário. O Tropicalismo sacudiu a cena brasileira da música popular e colocou em close a quebra das distinções entre erudito e popular, antigo e moderno, brega e bom gosto. Isto – é claro – na esteira da Antropofagia oswaldiana.

A Poesia Marginal bebeu na fonte do Tropicalismo. Mas bebeu muito pouco. Só meio copo. Na verdade os poetas marginais não sacavam quase nada da nossa tradição poética nem cultural. O próprio Chacal, em depoimento à revista Escrita, em 1977, declara: “(...) eu lia pouco, muitos contos de fadas, Monteiro Lobato”. Eram porraloucas. Com o desbunde, adolescentemente investiam contra tudo que se consolidara como valor literário. Mas ao contrário dos modernistas de 22, aos poetas marginais faltava um programa estético. Por quê? Porque eles mesmos, sendo contra a estética em vigor, queriam era malhar tudo que estivesse pela frente e tivesse valor literário consagrado. Malharam até João Cabral e os concretos, porque eram, diziam, demasiadamente tecnicistas.

O jornalista Carlos Juliano Barros anota: [a Poesia Marginal ao] “abordar temas terrenos e subjetivos consistia numa crítica ao que era considerado cânone na época, como a poesia de João Cabral de Mello Neto, por exemplo. Na concepção de alguns marginais, a literatura do mestre pernambucano tinha um caráter muito maquinal e tecnicista, com versos bem acabados, porém pouco antenados ao dia-a-dia”.

Sobre poesia, vanguarda e pós-vanguarda, diz Glauco Mattoso: “Depois de Oswald, a vanguarda só voltou à poesia brasileira na década de 50, com o movimento concreto (...) Até hoje esse é o movimento mais combatido, justamente por ser o mais revolucionário e o que sobrevive há mais tempo, enquanto tendências mais recentes se sucedem, se rebatizam, se esgotam, se radicalizam, regridem ou simplesmente caem de moda”.

E o que os poetas marginais propunham? Nada além da incorporação da coloquialidade e do humor. Mais o uso de gírias e de palavrões. Mas isto está nas raízes de 22. Só que os poetas marginais, ao contrário dos modernistas, não conheciam a tradição da poesia brasileira nem estrangeira. Ouviam dizer que os beats norte-americanos estavam on the road, que Oswald fazia poema-piada. Mas tudo era sabido “de ouvido”. Sem maiores verticalizações.

Pontua Glauco Mattoso “(...) antes de ser uma recusa, esta postura significa simplesmente um desconhecimento dos modelos literários, por falta de informação mesmo”. E prossegue: “(...) um estilo coloquial, por si só, apesar da gíria e do chulo” pode ser “conforme o caso, mero artifício estético, comum a todas as épocas”. (...) “Tudo leva à conclusão de que o rótulo poesia marginal é muito inconsistente no plano literário”.

Usando a terminologia de Antonio Candido podemos dizer que diante da Poesia Marginal a crítica que tem sido feita não é literária, mas sociologia da literatura. Isto porque o próprio objeto de estudo não se oferece como objeto estético. Diz Antonio Candido “(...) não uma crítica, mas (...) teoria e história sociológica, ou como sociologia da literatura (...) nota-se o deslocamento de interesse da obra para os elementos sociais (...)”. “Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificação causal”.

Por esta desinformação histórica e pelo maniqueísmo crítico, a Poesia Marginal ficou na adolescência da poesia brasileira. Ao invés do uso criativo e produtivo da coloquialidade (tal como T.S. Eliot apregoa: o poeta tem de ouvir e trabalhar a língua de seu povo, dialogando com a tradição) ou da apropriação crítico-criativa do poema-piada (como a exemplo de Oswald, Mário) a Poesia Marginal gerou uma poesia de segunda classe.

Isto não é novidade no cenário da poesia brasileira. Depois de 22, enxames de poetas devastaram a cena “literária” brasileira. Assim como os poetas da Poesia Marginal desconheciam a história estético-social da poesia brasileira, os milhares de poetas de plantão em todos os recantos do Brasil, estão de guardanapos em punho fazendo poesia coloquial, sentimental, cheia de tiradinhas de bom humor e bem quadradinhas.

A caretice se infiltrou e inflou o cenário literário brasileiro. A Poesia Marginal pertence a esta cena patética, como pertencem os milhares de zé-ninguém que se autoproclamam poetas a torto e a direito.

Qualquer coisa é Poesia Marginal. Basta emparelhar-se com a displicência, a vicissitude, a idiossincrasia que, na falta de valores, passam a ser valores.

O “fazer fácil” que a Poesia Marginal proclama, requer um sólido repertório literário e artístico para efetivar-se. É o caso de Manuel Bandeira. Nele a coloquialidade, o chiste, a fala do povo têm sotaque e dicção próprios. Em toda a Poesia Marginal não encontramos um poema que se equipare a “Madrigal tão engraçadinho”, por exemplo. Ou a “Namorados”, ambos de Bandeira. Ou mesmo a “O capoeira”, de Oswald.

Não sejamos ingênuos: não dá pra comparar os estilos bandeiriano e oswaldiano às peraltices dos poetas marginais. Oswald, Bandeira e – perto de nós: José Paulo Paes – aprenderam a desaprender o que sabiam para chegar à poesia. Assim como Miró desaprendeu a pintar pra pintar como criança. Agora, dizer que toda criança é artista porque Miró pintou como criança é de um anacronismo que estreita limites com a má-fé.

A Poesia Marginal acabou produzindo poemas convencionais – mesmo estando à margem. Convencional no tratamento literário dispensado aos poemas, ainda que o tema fosse engajado – cultural, social, sexualmente. Leminski é claro: “(...) um poema convencional continua medíocre mesmo que invista contra toda a opressão do mundo”.

Carlos Alberto Pereira escreveu o livro que é considerado obra de referência sobre a Poesia Marginal: Retrato de época: poesia marginal, anos 70. É interessante frisar que o autor é um antropólogo e abordou a Poesia Marginal, não como literatura, mas como fato cultural. Ou seja, a Poesia Marginal é analisada extraliterariamente. O que conta é a ideologia. Ora, isto não é crítica literária: é sociologia da literatura, ou antropologia literária.

Estas duas posturas não interessam a um crítico literário. Afinal, este enfoque crítico não vê o objeto literário como arte. Vê suas implicações como fato cultural. Os elementos da obra interessam à medida que revelam fatos extraliterários. Diante de tal ponto de vista, a especificidade literária do objeto artístico é suplantada por vetores de direções avessas à artística.

Carlos Alberto Pereira anota: “O que se atualiza nos poemas é, de certa forma, um conjunto de idéias e/ou de práticas cotidianas – isto é, do cotidiano de certo ou de certos grupos dentro da sociedade. Acho que é desta forma (...) que têm que ser encaradas, por ex., as referências a sexo, a tóxicos, o uso do palavrão e assim por diante”. Ou seja, não devem ser encaradas como literatura.

Não é por nada que Pereira identifica três idéias-chave: “antitecnicismo, politização do cotidiano e antiintelectualismo”. Mesmo reconhecendo não serem estes três pontos características exclusivas da Poesia Marginal, o autor destaca a importância social e antropológica desta poesia. Isto está fora de cogitação. Mas a pergunta que fica é: se a Poesia Marginal é poesia, como não considerá-la como poesia? Como não lê-la a partir de seus elementos intrínsecos, retomando aqui a expressão de Antonio Candido?

Contrariamente ao que diz Heitor Ferraz, a Poesia Marginal não sobrevive porque “vários representantes dessa vertente foram poetas originais” e nem porque “são trabalhos instigantes, que privilegiam a coloquialidade e a objetividade dentro de um modelo enxuto de expressão”. Penso que a Poesia Marginal sobrevive, tal como sobrevive Renato Russo contra Cazuza. Cazuza é massa de sangue poética. Renato Russo é bula para adolescentes.


Amador Ribeiro Neto é professor de Teoria da Poesia e Literatura Comparada na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre pela USP e Doutor pela PUC-SP. Autor de Barrocidade (poesia - Landy edit.), organizador e co-autor de "Literatura na Universidade" (ensaios - Idéia Edit.).

Um comentário:

  1. Não sei de onde o autor do texto tirou essa de que o poeta é um homem do povo... Leitura por demais marxista e, portanto, limititada, do poeta. O que dizer de Rilke, um dos maiores poetas do Ocidente? Que há de "povo" nesse poeta??? E no entanto fez os mais belos versos em língua alemã - embora tenha escrito em francês tb. Diz Amador: "O poeta sabe que nada pode faze se ignora a língua dos bares, das feiras, dos camelódromos (...)". Esse poeta é o poeta marginal. O autor do texto deve ter esquecido de fazer esse partitivo. Rilke é mais uma vez exemplo disso. Mas ainda Saint John Perse, Ives Bonnefoy, Auden, Yeats, Robert Frost, Bruno Tolentino etc... Todos grandes poetas, sem qualquer relação com o povo, exatamente... Essa leitura reduz a figura do poeta, e o coloca dentro da leitura de Ernst Fischer, apenas. Ou de Lukácks... Vamos com calma... Hà todo tipo de poeta no mundo. O poeta da torre de marfim, o poeta íntimo - um Georg Trakl, por exemplo -, o poeta das multidões - um Castro Alves - ou o poeta dos fios telegráficos - um Mario Quintana... O texto de Amador perde muito, por conta do sectarismo.

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