segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O desejo do contemporâneo [por Antonio Cicero]

O FILÓSOFO Gilles Deleuze diz que "uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro assim como se escuta um disco, assim como se vê um filme ou um programa de televisão, assim como se acolhe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija para ele um respeito, uma atenção especial, corresponde a outra época e condena definitivamente o livro".

Por mim, cada qual que leia o que quiser da maneira que lhe aprouver. Contudo, quando leio, por exemplo, as bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs, tenho a impressão de que hoje praticamente todo o mundo já adotou a maneira de ler recomendada pelo autor de "Diferença e Repetição". E então tendo a achar que Heidegger é que estava certo, quando recomendava aos seus alunos que adiassem a leitura de Nietzsche para depois que estudassem Aristóteles durante uns dez ou 15 anos.

Deleuze jamais concordaria com isso, pois considerava repressiva a história da filosofia. Segundo ele, as pessoas não se sentem no direito de pensar antes de terem lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger. Talvez. Mas eu diria antes que quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal. Se, na França, é a história da filosofia, no Brasil é a filosofia contemporânea que tem esse papel. Tradicionalmente o brasileiro, tendendo a considerar-se atrasado em relação ao que se discute no Primeiro Mundo, não se dá o direito a pensar antes de estar a par do "dernier cri" europeu ou norte-americano. Ora, mal se conhece o "dernier cri" e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde.

Além disso, quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos. A leitura dos contemporâneos toma-lhe todo o tempo. Tal pessoa espera que os autores da moda lhe indiquem quais dos autores do passado ainda devem ser respeitados (por exemplo, Spinoza e Nietzsche) e quais devem ser desprezados (por exemplo, Descartes e Hegel). E, no mais das vezes, como aquilo que os contemporâneos escrevem sobre os autores que recomendam é considerado justamente o supra-sumo destes, torna-se supérflua a leitura dos originais.

Pensemos no significado desse desejo de ser contemporâneo. "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".

Quando, por outro lado, digo que uma coisa ou pessoa é contemporânea, sem explicitar de quê ou de quem, fica sempre implícito que essa coisa ou pessoa é contemporânea de mim, que estou a dizê-lo. Se digo, por exemplo, "Giorgio Agamben é um filósofo contemporâneo", quero dizer que ele é meu contemporâneo: o que poderia ser dito pelas palavras "Giorgio Agamben é um filósofo do mesmo tempo que eu". Ou seja, o que quer que seja contemporâneo, sem mais, é contemporâneo de mim (seja quem eu for). É claro que, como a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas ou pessoas que me são contemporâneas.

Isso significa que não tem sentido que eu – seja quem eu for – me diga contemporâneo, sem mais. "Eu sou contemporâneo" significa apenas: "Eu sou do mesmo tempo que eu". Assim também, não tem sentido desejar ser contemporâneo, sem mais, pois "desejo ser contemporâneo" significa apenas: "Desejo ser do mesmo tempo que eu". Finalmente, não tem sentido desejar ser contemporâneo de alguma coisa ou pessoa contemporânea, uma vez que eu já sou, evidentemente, contemporâneo de quem me é contemporâneo.

Assim, o desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal. Quando se manifesta no campo da filosofia, talvez o melhor antídoto para ele seja exatamente a leitura cuidadosa dos clássicos.

E, de volta a Deleuze, devo dizer que, no lugar de tratar um livro como normalmente se escuta uma canção, acho mais proveitoso, de vez em quando, escutar algumas canções com o respeito e a atenção especial que o bom leitor jamais deixará de dedicar aos bons livros.


Poeta e ensaísta, Antonio Cicero é autor, entre outras coisas, dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim e Finalidades sem fim, e dos livros de poemas Guardar, A cidade e os livros e, em parceria com o artista plástico Luciano Figueiredo, O livro de sombras: pintura, cinema e poesia.



domingo, 30 de janeiro de 2011

Regras Claras [por Hermano Vianna]

Escrito em 28/01/2011 n'O Globo

O plano era passar um tempo sem falar em direito autoral por aqui. Há outras coisas interessantes no mundo. Também seria deselegante parecer estar pressionando a ministra da Cultura a ter rápida posição sobre o assunto. Posse em ministérios exige calma e tempo. Como a história de Ana de Hollanda comprova disposição para o diálogo, pensava que era isso que pedia em suas primeiras manifestações como ministra, declarando que só voltaria a falar sobre a reforma da Lei de Direito Autoral quando tivesse tempo para estudar com calma o projeto apresentado pela gestão Juca/Gil.

Estava então imerso em outros temas quando fui surpreendido pela barulheira no Twitter. A causa? O site do MinC, na calada da noite, havia trocado o licenciamento Creative Commons por declaração vaga: “O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.”. Diante do protesto, foi publicada nota de esclarecimento, falando erroneamente em referência e não em licenciamento: “A retirada da referência ao Creative Commons da página principal do Ministério da Cultura se deu porque a legislação brasileira permite a liberação do conteúdo. Não há necessidade de o ministério dar destaque a uma iniciativa específica. Isso não impede que o Creative Commons ou outras formas de licenciamento sejam utilizados pelos interessados.”. Esclarecimento nada esclarecedor que coloca ponto final em conversa que não teve início.

Volto ao assunto Gov 2.0, que dominou esta coluna recentemente. O site culturadigital.br, hóspede dos debates sobre o Marco Civil da Internet e a Classificação Indicativa, iniciativas do Ministério da Justiça, tem seu conteúdo publicado sob uma licença Creative Commons (CC). O blog do Palácio do Planalto tem licença CC (diferente da usada no culturadigital.br). O site da Casa Branca dos EUA “é” CC. O blog do Departamento de Finanças da Austrália é CC (bit.ly/bo90EU). Já o OpenData do governo britânico é diferente: não tem licença CC. Porém, seus responsáveis criaram uma outra licença, a Open Government Licence (bit.ly/cS6EGp), parecida com uma licença CC, mas com outros detalhes e finalidades.

O MinC deveria ter seguido o exemplo do governo britânico. Ninguém é obrigado a usar licenças CC. Mas alguma licença é necessária (assim como, mesmo com uma legislação trabalhista geral, precisamos assinar diferentes contratos ao iniciar novos trabalhos). A declaração do MinC (“O conteúdo deste site, produzido pelo Ministério da Cultura, pode ser reproduzido, desde que citada a fonte”) não é uma licença, não tem validade jurídica. Sim: a legislação brasileira já permite a “liberação” de conteúdo. As licenças CC-BR são totalmente baseadas na legislação brasileira – não propõem nada que essa legislação não permita. Sua novidade é dar uma redação juridicamente clara para a autorização prévia de alguns, não todos, tipos bem específicos de utilização desse conteúdo. Por exemplo: sua reprodução, sua tradução, sua “remixagem” etc. – dependendo da licença escolhida.

Se o novo MinC não queria sigla CC em seu site, que pelo menos se desse tempo para criar uma nova licença válida em tribunais, como fez o governo britânico. Isso não se faz apressadamente. Bons advogados são necessários para esse trabalho, que pode custar caro aos cofres públicos (vantagens das licenças CC: já estão prontas, são validas juridicamente, são compreensíveis em qualquer lugar do mundo e ninguém precisa pagar para utilizá-las). Com a pressa, o conteúdo do site do MinC e as pessoas que reproduzem esse conteúdo estão agora desprotegidos. (E com muitas dúvidas. Um exemplo: conteúdo do site pode ser usado para finalidades comerciais? Acredito que sim, mas o texto não deixa isso claro). Essa atitude não incentiva a defesa dos direitos autorais e sim cria um clima de “ninguém precisa licenciar nada” ou vale tudo.

Já há muita complexidade no debate sobre direito autoral. O MinC não pode atuar para criar confusão. Precisamos de licenças e regras claras. O CC prega exatamente o contrário do liberou geral. Com suas licenças todo mundo fica sabendo exatamente o que pode ou não fazer com cada conteúdo, seguindo as determinações de seus próprios autores. Ninguém “abre mão de seus direitos” e sim exerce mais plenamente seus direitos ao estabelecer o que pode ser feito com suas obras. Para “liberar” (prefiro dizer “autorizar”) alguns usos do conteúdo produzido seja em sites governamentais ou privados, precisamos deixar clara que liberação é essa. Sem algum tipo de licença, a lei entende que ninguém pode fazer nada com esse conteúdo, sem autorização a cada vez que for usado para qualquer fim. Uma experiência como a Wikipédia, onde podemos a todo o momento editar o texto dos outros, seria ilegal se não acontecesse com licença clara que autoriza a reedição contínua.

Não estou aqui para pedir a volta da licença CC. Quanto mais licenças, melhor: aumentam nossas opções, segurança e legalidade. Seria ótimo que o MinC fizesse a crítica das licenças CC, para aperfeiçoá-las em outras licenças. Que comece logo o diálogo, com calma e tempo. Agradeço a Caetano Veloso por ter, em sua coluna do domingo passado, expressado seu desejo que é uma (boa) ordem: precisamos de uma “conversa produtiva” entre todos os grupos interessados em “levar o Brasil para a frente sem perder a dignidade”.


sábado, 29 de janeiro de 2011

Futebol e Identidade [por Antonio Risério]

Décadas depois de desancado por Lima Barreto e Graciliano Ramos, como coisa de gringos e burgueses, o futebol acabou chegando ao campo das discussões acerca da identidade brasileira. Fátima Antunes, por exemplo, elaborou "uma reflexão sobre a sociedade brasileira, na tentativa de compreender como ela se via e quais ideologias criou a respeito de si própria, tendo o futebol como paradigma da identidade nacional". Há quem ache que a tese é válida para todos, como Giulianotti: "Em qualquer lugar, o futebol nos fornece uma espécie de mapa cultural, uma representação metafórica, que melhora a nossa compreensão daquela sociedade... Sua centralidade cultural, na maior parte das sociedades, significa que o futebol tem uma importância política e simbólica profunda, já que o jogo pode contribuir para as ações sociais, filosofias práticas e identidades culturais de muitos e muitos povos... a difusão do futebol de um lado a outro do mundo possibilitou que diferentes culturas e nações construíssem formas particulares de identidade por meio de sua interpretação e prática de jogo". E se isto vale para o mundo inteiro, pensa o torcedor brasileiro, vale muito mais para o Brasil, "país do futebol".

Dizia Roberto DaMatta, tempos atrás: "No caso brasileiro, foi indiscutivelmente através do futebol... que o povo pôde finalmente juntar os símbolos do Estado nacional (a bandeira, o hino e as cores nacionais), esses elementos que sempre foram propriedade de uma elite restrita e dos militares, aos seus valores mais profundos. Ainda é o futebol que nos faz ser patriotas, permitindo que amemos o Brasil sem medo da zombaria elitista... Além disso, o futebol institui abertamente a malandragem como arte de sobrevivência e o jogo de cintura como estilo nacional. Mas sem excluir a capacidade de jogar com técnica e força. Foi, portanto, só com o futebol que conseguimos, no Brasil, somar Estado Nacional e sociedade. E, assim fazendo, sentir, pela avassaladora e formidável experiência de vitória em Copas do Mundo, a confiança na nossa capacidade como povo criativo e generoso. Povo que podia vencer como país moderno, que podia, também, finalmente, cantar com orgulho o seu hino, e perder-se emocionado dentro do campo verde da bandeira nacional".

E o cientista político Luis Fernandes, que considera o futebol "um dos pilares da nossa identidade nacional", em prefácio à mais recente edição do clássico de Mário Filho: "Para além das paixões clubísticas, a democratização da prática do futebol, materializada na ascensão de jogadores negros e mestiços, permitiu que esse esporte viesse a ocupar posição central na construção da identidade nacional. Na ausência de um maior envolvimento brasileiro em guerras - matéria-prima para a construção de fronteiras de identidade na formação dos estados nacionais unificados da Europa - o futebol forneceu um simulacro de conflito bélico para o qual era possível canalizar emoções e construir sentidos de pertencimento nacional... Do Estado Novo de Getúlio ao regime militar, passando pela República Democrática instalada em 1945, todos os regimes que governaram o Brasil durante o seu ciclo nacional-desenvolvimentista exploraram a chave do futebol para ajudar a construir e consolidar a nossa identidade nacional. Em oposição ao racismo aberto das velhas oligarquias, o novo discurso oficial passou a valorizar a mestiçagem, associando-a aos sucessos de uma 'escola brasileira' de futebol, que expressaria a nossa singular maneira de ser no mundo, marcada pela criatividade, flexibilidade, informalidade e sensibilidade plástica".

Há quem discorde. Como Hélio Sussekind, que, ao se perguntar se o futebol contribui para a construção de uma identidade nacional, responde com um sonoro não. Sussekind acha que futebol é dissensão. A violência é uma das suastrade marks de esporte desagregador. Mesmo em partidas do escrete canarinho, a torcida não estaria ali para festejar a seleção, mas jogadores de seus times de preferência. Afirma, ainda, que o futebol não pode contribuir para uma construção porque não constrói nada. "No que se refere à construção de uma nação, ao fortalecimento de uma identidade nacional, não há o que esperar do futebol. Nunca é demais reforçar que ele é incapaz de produzir o que a sociedade não tenha experimentado antes".

A postura é insustentável. Como dizia Nelson Rodrigues, "o escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós". O povo torce pela seleção. Em estádios do Paraná, de Minas Gerais ou de Pernambuco, ainda que sem qualquer jogador local em campo, pessoas enchem as arquibancadas - aplaudindo, inclusive, jogadores de times que detestam. O que se quer é ver o Brasil vencer. Mas não é isto o mais importante. O problema é que Sussekind pensa a identidade em termos horizontais e circunscritos: se a platéia se divide em torcidas rivais, não há identidade possível. Mas não é nesse plano que a identidade se forma. Ela acontece na dimensão da similaridade e não no eixo da contigüidade. Se torço pelo Fluminense e você pelo Flamengo, estamos divididos no estádio - mas não são o Flamengo e o Fluminense que criam a identidade: é o torcer. Além disso, identidade nada tem a ver com laços fraternais. Numa rua do Rio, o bandido que dispara a arma e a vítima que cai agonizando pertencem ao mesmo campo de cultura. Por fim, uma forma cultural, para integrar o conjunto de elementos que compõem a identidade de um grupo ou a de uma nação, não tem de produzir obrigatoriamente algo "que a sociedade não tenha antes experimentado". É quase o contrário. Embora mutável, a identidade é sempre mais um estar-aí do que um vir-a-ser.

Antonio Risério é poeta e antropólogo, autor de, entre outros, "Textos e Tribos" (Imago, 1993), "Avant-Garde na Bahia" (Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995) e "Fetiche" (Fundação Casa de Jorge Amado, 1996).


sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

NÃO RECOMENDO: JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Olha que desgraça, esse vídeo! Tudo mal feito: vídeo mal feito, poema mal feito, recital mal feito... Erotismo que dá nojo!!!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Somos todos pardos [por Ali Kamel]

O leitor interessado no tema certamente já ouviu ou leu esta frase: a pobreza no Brasil tem cor e ela é negra. É uma frase sempre presente nos trabalhos de pesquisadores que defendem a política de cotas raciais, seja nas universidades, seja no serviço público. Os números que eles divulgam são de fato eloqüentes. Eles sempre dizem que os brancos no Brasil são 54% da população e os negros, 45%. E se perguntam: "Será que a pobreza acompanha esses mesmos critérios demográficos?" E respondem que não: segundo um estudo com dados de 1999, dos 53 milhões de brasileiros pobres, os brancos são apenas 36% e os negros representam 64% do total. E concluem: os negros são pobres porque no Brasil há racismo.

Os números são eloqüentes, mas inexatos. Segundo o mesmo estudo, os negros são 5% e não 45%. Os brancos são, de fato, 54% da população. A grande omissão diz respeito aos pardos: eles são 40% dos brasileiros (as alterações no Censo de 2000 foram mínimas). Entre os 53 milhões de pobres, os negros são 7%, e não 64%.

Os brancos, 36% e os pardos, 57%. Portanto, se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor é parda. O que os defensores de cotas fazem é juntar o número de pardos ao número de negros, para que a realidade lhes seja mais favorável: é apenas somando-se negros e pardos que o número de pobres chega a 64%. Os artigos desses pesquisadores primeiro estratificam a população entre brancos, pretos, pardos, amarelos e indígenas para, logo depois, agrupar pretos e pardos e chamá-los a todos de negros (desse ponto em diante, em todas as estatísticas, há apenas menção a negros, mas, na verdade, os números se referem sempre à soma de pardos e negros). Geralmente os pesquisadores fazem a seguinte observação: "A população negra ou afro-descendente corresponde ao conjunto das pessoas que se declaram pretas ou pardas nas pesquisas do IBGE".

O problema é definir o que é pardo. Para mim, é constrangedor ter de discutir nesses termos, eu que não tenho a cor de ninguém como critério de nada. Mas, infelizmente, é a lógica que reina no debate e eu tenho de me curvar a ela. A funcionária do IBGE que me ajuda com os números se disse parda ao censo, "parda como a Glória Pires". Mas, para muitos, a Glória Pires é branca. Digo isso com real preocupação: quem é pardo? O pardo é um branco meio negro ou um negro meio branco?

Somar pardos e negros seria apenas um erro metodológico se não estivesse prestes a provocar uma injustiça sem tamanho. Porque todas as políticas de cotas e ações afirmativas se baseiam na certeza estatística de que os negros são 64% dos pobres, quando, na verdade, eles são apenas 7%. Na hora de entrar na universidade ou no serviço público, os negros terão vantagens. Os pardos, não. Do ponto de vista republicano, isso é grave. Na hora de justificar as cotas, os pardos são usados para engrossar (e como!) os números. Na hora de participar do benefício, serão barrados. Literalmente. Este ano, a Universidade Estadual de Matogrosso do Sul instituiu cotas para negros em seu vestibular: 20% das vagas, 328 lugares. 530 estudantes se disseram negros e tiveram de apresentar foto colorida de tamanho cinco por sete. Uma comissão de cinco pessoas foi constituída para analisar as fotos segundo alguns critérios. Só passariam os candidatos com o seguinte fenótipo: "Lábios grossos, nariz chato e cabelos pixaim", na definição dos avaliadores. 76 foram rejeitados por não terem tais características. Provavelmente, eram pardos.

Que o Brasil é injusto, não há dúvida, mas querer criar mais uma injustiça é algo que não se entende. Por que os pardos, usados para justificar as cotas, terão de ficar fora delas, mesmo sendo tão pobres quanto os negros? Porque alguns têm nariz afilado ou cabelos ondulados? E por que os brancos, mesmo pobres, serão condenados a ficar fora da universidade? Os defensores de cotas raciais dizem que os brancos são "apenas" 36% dos pobres. Apenas? 36% significam 19 milhões de brasileiros, um enorme contingente que será abandonado à própria sorte. A simples existência de tantos brancos pobres desmentiria por si só a tese de que a pobreza discrimina entre pobres e negros: em países verdadeiramente racistas, o número de pobres brancos jamais chega próximo disso. Da mesma forma, o enorme número de brasileiros que se declaram pardos, 68 milhões numa população de 170 milhões, já mostra que somos uma nação amplamente miscigenada. Como o pardo tem de ser, necessariamente, o resultado do casamento entre brancos e negros, o número de brasileiros com algum negro na família é necessariamente alto. Isso seria a prova de que somos uma nação majoritariamente livre de ódio racial (repito que, sim, sei que o racismo existe aqui e onde mais houver seres humanos reunidos, mas, certamente, ele não é um traço marcante de nossa identidade nacional).

Todos esses números só reforçam a minha crença de que uma política de cotas raciais será extremamente prejudicial e injusta. Em todas as universidades que instituíram políticas assim há discussões antes não conhecidas entre nós: negros acusando nem tão negros assim de se beneficiaram indevidamente de cotas; pardos tentando provar que o cabelo pode não ser pixaim, mas a pele é negra; e brancos se sentindo excluídos mesmo sendo tão pobres quanto os candidatos negros beneficiados pelas cotas. Dizendo claramente: corremos o sério risco de, em breve, ver no Brasil o que nunca houve, o ódio racial. O certo é o simples: instituir cotas não raciais, mas baseadas na renda. Assim, pobres, que hoje não chegam à universidade, seriam incluídos. Sejam negros, pardos ou brancos.


Ali Kamel é diretor da CGJ, Central Globo de Jornalismo, da TV Globo.
Formado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.



Corpos estreitamente vigiados [por Maria Rita Kehl]

Uma das representações mais antigas da melancolia que se conhece, ao menos no Ocidente, remonta à Idade Média. Está associada ao rígido controle das pulsões imposto pela Igreja Católica aos monges recolhidos ao isolamento dos mosteiros. Na iconografia medieval da melancolia encontra-se com freqüência a figura de um pobre monge assolado por figuras diabólicas que representam toda a sorte de tentações a que ele deveria resistir. A acedia, prostração da vontade que acometia o cristão dedicado a sacrificar todos os prazeres mundanos para melhor servir a Deus, é uma forma melancólica de rendição diante das exigências imperiosas de um corpo que, como viria a proclamar Lacan sete ou oito séculos mais tarde, não tem condições de sublimar todas as demandas de satisfação pulsional.

A repressão auto imposta exige tanto esforço da consciência e tamanha disciplina do corpo que acaba por enfraquecer o próprio sentido do sacrifício. A acedia, “retração da alma diante do objeto de seu desejo” (Yves Hersant, “L’acédie et sés enfants” em: Jean Clair, Mélancolie, génie et folie en Occident ), apela ao Diabo, uma vez que o penitente sente-se esmagado pelo tamanho da renúncia que se obriga a fazer. A figura lendária de Santo Antonio atormentado pelas tentações foi objeto de uma novela escrita por Flaubert, já no século XIX. “No fundo, não amo a Deus...”, queixa-se o personagem, abatido pelo “demônio do meio-dia” da melancolia.

O princípio do prazer é o que dá sentido à vida, escreveu Freud, já bem perto da nossa era. A recusa radical a todos os prazeres destrói o sentido da nossa passagem por este mundo, ainda quando esta se orienta em direção aos mais altos ideais.

Tão longe, tão perto. O que sabemos nós sobre a acedia medieval, em pleno século XXI? Existe alguma afinidade entre os sacrifícios auto-impostos pelos antigos monges e a liberdade com que os filhos do terceiro milênio predispõem-se ao desfrute de todos os prazeres? Existe alguma semelhança entre a antiga condenação cristã contra o gozo e a convocação permanente que apela a que o sujeito contemporâneo se entregue sem reservas a todas as tentações?

Bem: nem todas. As tentações da gula, por exemplo, são hoje ainda mais malditas do que na idade das trevas. As da preguiça e da indolência, nem se fala. O prazer, em nossa era, está intimamente vinculado ao movimento e à atividade. Os corpos pós-modernos têm que dar provas contínuas de que estão vivos, saudáveis, gozantes. Ao trabalho, moçada! A quietude não tem nenhum prestígio na era da publicidade, das raves embaladas a ecstasy, dos filmes de ação. Estamos liberados para usufruir todas as sensações corporais, mas para isso o corpo deve trabalhar como um escravo, como um remador fenício, como um condenado a trabalhos forçados. Anorexias, bulimias, seqüelas causadas pelo abuso de anabolizantes e de moderadores de apetite sinalizam a permanente briga contra as tendências do corpo a que se entregam, sobretudo, os jovens, numa sanha disciplinar de fazer inveja ao pobre Santo Antonio.

Tão longe, tão perto. Temos a liberdade, ou melhor, temos a obrigação de nos permitir todos os prazeres sexuais. Seria ótimo, se não fosse obrigatório. Quem não conhece o caráter desmancha-prazeres até das práticas mais libertinas, quando impostas pelo superego? Seríamos livres se não nos sentíssemos obrigados a dar provas permanentes de nossa capacidade de gozar. Seríamos mestres do hedonismo se não estivéssemos tão vigilantes em relação às performances sexuais, tão preocupados com as menores imperfeições de um corpo que se oferece ao outro como pura imagem. Seria ótimo, enfim, se estes corpos estreitamente vigiados não tivessem perdido algumas de suas capacidades básicas, essenciais ao próprio prazer.

Como por exemplo, a capacidade do abandono contemplativo. Há muita atualidade em Aristóteles, que inspirou Freud a escrever que o prazer dá sentido à vida. A Ética de Aristóteles não prega contra os prazeres, como viria a fazer o cristianismo, mas propõe uma hierarquia entre eles. Aristóteles não condena os prazeres puramente corporais: considera-os inferiores. Para ele, o prazer superior é o da contemplação: esta capacidade de conectar-se com o mundo num certo estado de silêncio do corpo e de desligamento da consciência auto-vigilante. A contemplação exige que se esteja em paz com o corpo e que a consciência esteja aberta ao momento, livre da pressão das fantasias e das exigências do superego. Condições semelhantes às exigidas para o desfrute dos prazeres sexuais. Mas nunca estivemos tão submetidos à tirania das fantasias prêt-à-porter e aos imperativos superegóicos da moral do gozo.

A modernidade resulta de um longo processo de disciplina e de auto-observação dos corpos. O Processo Civilizador, do sociólogo alemão Norbert Elias, é uma minuciosa investigação sobre a gênese da formação do que é hoje, para nós, o corpo civilizado normal. A socialização das crianças pequenas, desde as primeiras formações das sociedades de corte, consistia (como ainda hoje) no aprendizado de uma série de controles corporais. Aprende-se desde cedo como é que se anda no meio dos outros, como é que se come em presença de estranhos, como se controlam os impulsos corporais em público. A criação da moderna esfera privada nas sociedades liberais é indissociável da introjeção dos mecanismos de controle dos impulsos e dos afetos, na vida pública. Freud considerava o desenvolvimento de uma instância psíquica encarregada do auto-controle como um avanço da civilização. A auto-disciplina afetiva e corporal é condição do engajamento dos sujeitos na ordem social, diria Foucault, para quem a submissão voluntária é o braço subjetivo do poder. O auto-policiamento permanente é o preço a ser pago pela vida moderna, sobretudo nas cidades.

Mas houve uma transformação importante nos termos desse controle, acompanhando a mudança do capitalismo, desde a fase produtiva do início do século XX até a fase consumista dos nossos dias. Passamos de uma economia psíquica do adiamento do prazer para outra, do imperativo do gozo. A moral do self made man foi substituída pela moral do body-building. Isto não significa que em nossa era os corpos em exibição no mercado da imagem não estejam submetidos a formas de controle talvez tão rigorosas quanto as que torturavam os monges medievais. Fazer do corpo uma imagem oferecida ao olhar crítico do Outro exige muita disciplina, muito controle e, sim, muita repressão.

A quietude contemplativa, assim como a fruição sexual, só são possíveis se o corpo não estiver permanentemente vigiado pelo eu, auto consciente da imagem que pretende apresentar em público. Não devemos confundir a dimensão libertária do desejo com a dimensão superegóica da cultura do narcisismo corporal. Jean-Jaques Courtine detectou uma continuação do puritanismo na cultura norte-americana do body-building . Para Courtine, a sanha do fisioculturismo que data dos anos 1980 “não corresponde a um laisser-aller hedonista, mas a um reforço disciplinar, a uma intensificação dos controles. Ele não corresponde a uma dispersão da herança puritana, mas antes a uma repuritanização dos comportamentos cujos signos, de modo mais ou menos explícito, multiplicam-se hoje”.

Hoje, o chamado amor próprio depende da visibilidade. Não se trata apenas da beleza. Não basta ter um rosto harmonioso, um corpo bem proporcionado. É preciso aumentar a taxa de visibilidade, ocupar muito espaço no mundo. É preciso fazer a imagem crescer. Inflar os bíceps, as nádegas, os peitos, aumentar as bochechas, esticar o comprimento dos cabelos. A receita de beleza no terceiro milênio deve ser: muito tudo.

Não importa que com isso as mulheres fiquem mais ou menos parecidas com os standarts oferecidos pelos esteticistas. Um homem pode olhar as moças no bar ou na fila do cinema e classificá-las pelas características das intervenções que elas fizeram: seios de silicone, olhos arregalados por botox, cabelos alongados, lifting, dentes branqueados. Do ponto de vista delas o que importa é garantir um lugar de destaque nas vitrines do mercado das imagens.

Seria ingenuidade criticar a nova onda das formas siliconadas em nome de um ideal de corpo natural. O corpo humano nunca foi natural. As tribos mais primitivas se distinguem umas das outras pelas alterações estéticas, simbólicas e rituais nos corpos de seus membros. Do botox aos botocudos, do silicone às anquinhas, das escaras às tatuagens atuais, os corpos humanos são sempre desnaturados pelas práticas culturais. O que há de novo é o poder da tecnologia intervir cada vez mais na estrutura dos corpos, e o poder do marketing, que torna essas intervenções quase imprescindíveis. Não deixa de ser irônico que o padrão estético imposto pela tecnologia mais avançada se assemelhe ao dos corpos femininos do século XIX: as nádegas protuberantes, modeladas nas academias, substituem as anquinhas; as barrigas lisas imitam as cinturinhas de vespa obtidas com o uso de espartilhos. As filhas do pós-feminismo não medem sacrifícios para atrair os olhares masculinos. Ou a inveja das outras mulheres. Ou a aprovação do espelho, esta versão caseira da telinha.

E a prova dos nove do sucesso, qual será? O acesso aos mistérios do sexo e do desejo sexual? Não creio. O desejo não se dirige à perfeição, dirige-se ao enigma. Quanto ao erotismo, será que o sexo praticado entre os bombados e as siliconadas é mais interessante, mais inventivo, mais sacana do que o sexo entre pessoas fisicamente comuns? Conseguiremos ser, ao mesmo tempo, escravos da imagem e mestres da libertinagem?

Como o Santo Antonio de Flaubert, que já não é mais capaz de amar o Deus que lhe impõe tantas renúncias, os jovens escravizadores dos corpos do século XXI já perderam de vista a divindade à qual oferecem seus sacrifícios. A forma contemporânea da acedia medieval é o tédio que vitima jovens casais, apartados do saber inconsciente sobre o desejo sexual na medida em que obedecem cegamente à exigência superegóica de construir um corpo reduzido à dimensão de imagem sem interioridade, sem história, sem nenhum vestígio das imperfeições da vida.


Maria Rita Kehl é doutora em psicologia clínica (PUC/USP) e psicanalista. Ensaísta e poeta, autora de A mínima diferença: o masculino e o feminino na cultura, Processos e deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, entre outros livros.



quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Violência contra Homossexuais [por Dráuzio Varella]


A homossexualidade é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. Nesse sentido, não existe aspecto do comportamento humano que se lhe compare.


Não há descrição de civilização alguma, de qualquer época, que não faça referência à existência de mulheres e homens homossexuais. Apesar dessa constatação, ainda hoje esse tipo de comportamento é chamado de antinatural.


Os que assim o julgam partem do princípio de que a natureza (ou Deus) criou órgãos sexuais para que os seres humanos procriassem; portanto, qualquer relacionamento que não envolva pênis e vagina vai contra ela (ou Ele).


Se partirmos de princípio tão frágil, como justificar a prática de sexo anal entre heterossexuais? E o sexo oral? E o beijo na boca? Deus não teria criado a boca para comer e a língua para articular palavras?


Se a homossexualidade fosse apenas perversão humana, não seria encontrada em outros animais. Desde o início do século 20, no entanto, ela tem sido descrita em grande variedade de espécies de invertebrados e em vertebrados, como répteis, pássaros e mamíferos.


Em virtualmente todas as espécies de pássaros, em alguma fase da vida, ocorrem interações homossexuais que envolvem contato genital, que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em orgasmo e ejaculação.


Comportamento homossexual envolvendo fêmeas e machos foi documentado em pelo menos 71 espécies de mamíferos, incluindo ratos, camundongos, hamsters, cobaias, coelhos, porcos-espinhos, cães, gatos, cabritos, gado, porcos, antílopes, carneiros, macacos e até leões, os reis da selva.


Relacionamento homossexual entre primatas não humanos está fartamente documentado na literatura científica. Já em 1914, Hamilton publicou no Journal of Animal Behaviour um estudo sobre as tendências sexuais em macacos e babuínos, no qual descreveu intercursos com contato vaginal entre as fêmeas e penetração anal entre machos dessas espécies. Em 1917, Kempf relatou observações semelhantes.


Masturbação mútua e penetração anal fazem parte do repertório sexual de todos os primatas não humanos já estudados, inclusive bonobos e chimpanzés, nossos parentes mais próximos.


Considerar contra a natureza as práticas homossexuais da espécie humana é ignorar todo o conhecimento adquirido pelos etologistas em mais de um século de pesquisas rigorosas.


Os que se sentem pessoalmente ofendidos pela simples existência de homossexuais talvez imaginem que eles escolheram pertencer a essa minoria por capricho individual. Quer dizer, num belo dia pensaram: eu poderia ser heterossexual, mas como sou sem vergonha prefiro me relacionar com pessoas do mesmo sexo.


Não sejamos ridículos; quem escolheria a homossexualidade se pudesse ser como a maioria dominante? Se a vida já é dura para os heterossexuais, imagine para os outros.


A sexualidade não admite opções, simplesmente é. Podemos controlar nosso comportamento; o desejo, jamais. O desejo brota da alma humana, indomável como a água que despenca da cachoeira.


Mais antiga do que a roda, a homossexualidade é tão legítima e inevitável quanto a heterossexualidade. Reprimi-la é ato de violência que deve ser punido de forma exemplar, como alguns países fazem com o racismo.


Os que se sentem ultrajados pela presença de homossexuais na vizinhança, que procurem dentro das próprias inclinações sexuais as razões para justificar o ultraje. Ao contrário dos conturbados e inseguros, mulheres e homens em paz com a sexualidade pessoal costumam aceitar a alheia com respeito e naturalidade.


Negar a pessoas do mesmo sexo permissão para viverem em uniões estáveis com os mesmos direitos das uniões heterossexuais é uma imposição abusiva que vai contra os princípios mais elementares de justiça social.


Os pastores de almas que se opõem ao casamento entre homossexuais têm o direito de recomendar a seus rebanhos que não o façam, mas não podem ser fascistas a ponto de pretender impor sua vontade aos que não pensam como eles.


Afinal, caro leitor, a menos que seus dias sejam atormentados por fantasias sexuais inconfessáveis, que diferença faz se a colega de escritório é apaixonada por uma mulher? Se o vizinho dorme com outro homem? Se, ao morrer, o apartamento dele será herdado por um sobrinho ou pelo companheiro com quem viveu trinta anos?



terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Internet, o fim da inocência. [Entrevista: Evgeny Morozov]

Reproduzido de O Globo, 17/01/2010.

Se a primeira metade da década passada foi marcada pela expectativa de que a internet revolucionaria a vida cotidiana, os últimos anos testemunharam o crescimento de uma corrente cibercética, cujo principal argumento é o de que a rede, por si só, não fará milagres em termos de mobilização de usuários. Um dos nomes mais conhecidos dessa corrente é o do bielorrusso Evgeny Morozov, autor de The net delusion ("A ilusão da rede", numa tradução livre), livro lançado na Europa e nos EUA no início do mês.

Morozov, professor da Universidade de Stanford e blogueiro especializado em discussões sobre os efeitos da internet, critica o que chama de visão idealizada da internet como instrumento de ativismo político, guardando munição especialmente para as teorias de que acesso à tecnologia serve como arma conta regimes opressores. Na semana em que o governo da Tunísia caiu num levante popular em que o uso de redes sociais foi frequente, o argumento de Morozov é que "a internet não faz mágica". Em entrevista ao Globo, o acadêmico queixa-se especificamente da postura de autoridades como a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, em relação ao WikiLeaks: "Não é por receber mais informações que as pessoas vão querer derrubar governos".

***

O senhor não acredita no potencial democratizante da internet?

Evgeny Morozov – Não é isso. Há definitivamente potencial na rede para apoiar mudanças, sobretudo pela facilitação da comunicação entre indivíduos. Meu problema é com toda a ideologia por trás disso. A internet não faz mágica. Não podemos simplesmente assumir que acesso à tecnologia vai simplesmente transformar sociedades, pois sociedades diferem entre si. Algumas, por exemplo, são mais guiadas por princípios nacionalistas e religiosos, que simplesmente podem ser amplificados pela rede.

Há críticas especiais à postura do governo americano em seu livro. Por quê?

E.M. – Refiro-me especificamente a um discurso da secretária de Estado, Hillary Clinton, sob o tema "Liberdade da internet", em que se falou em como a tecnologia digital permitiria a luta contra a opressão, entre outras coisas. É errado e pode ser encaixado na mesma categoria da ideia de que o acesso a programas de TV ocidentais iriam fomentar a queda do comunismo – a Alemanha Oriental durante muito tempo desfrutou do privilégio sem que nada mudasse.

Nem todo mundo quer democracia, é o seu argumento...

E.M. – Sim, e a Rússia é um grande exemplo. Continua sendo um país autoritário mesmo depois da fragmentação da URSS. É um caso de que a internet muitas vezes pode servir apenas como um instrumento de entretenimento, não necessariamente de politização, ou não teríamos tanta gente assistindo a vídeos bizarros no YouTube, apostando em cassinos ou buscando pornografia. A URSS quebrou porque a vida era chata... Eu estava lá! As pessoas queriam calças jeans e gadgets muito mais do que qualquer outra coisa (risos).

Mas o que dizer de casos como o Twitter no Irã, quando o microblog ajudou nos protestos contra a fraude na eleição presidencial?

E.M. – É parte da ingenuidade. O Twitter tinha apenas 20 mil usuários na época do pleito. Imaginar que isso poderia reverter o status político-religioso é tão lúdico quanto pensar que o Iraque automaticamente seria democrático após a derrubada de Saddam Hussein. Não é apenas por receber mais informações que as pessoas vão querer derrubar governos.

O senhor também argumenta que a rede não é invulnerável à censura. O quão possível é este controle?

E.M. – Na China, por exemplo, o governo consegue controlar cada vez mais a internet e cercear conteúdo. Regimes autoritários estão ficando bons nisso. O que não quer dizer que o jogo não tenha mudado para os ativistas. A internet facilita a propagação de ideias, por aumentar o alcance ao menos tempo em que diminui os custos de divulgação e mobilização. O que me incomoda é o volume de expectativas. Mudanças não vão acontecer da noite para o dia.

O que está faltando?

E.M. – A internet ainda precisa motivar mais a esfera pública, fazer com que mais pessoas se sintam motivadas a participar do debate político. Ajudar a formar um novo tipo de cidadão.

Como o senhor vê o efeito Wikileaks, site que tem vazado documentos importantes e incomodado o governo de muitos países?

E.M. – Interessante sob vários aspectos. Em termos tecnológicos, há a vantagem tecnológica de codificação das informações para impedir sua interceptação. Mas o que me chama mais a atenção é o fato de o site ainda precisar de métodos tradicionais de divulgação: o Wikileaks ainda depende da projeção dada pela mídia. Julian Assange não seria tão famoso sem os jornais, que, na verdade, fazem parte do trabalho do site. É tão irônico como ver gurus da internet falando sobre o poder de blogs e redes sociais usando livros...

Mas os hackers não são um exemplo do que se pode chamar de potencial subversivo da rede?

E.M. – Hackers podem ser bastante perigosos, mas em termos de organização ainda me parecem muito isolados para serem considerados uma força significativa de desobediência civil.



segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Falando no celular. [por João Ubaldo Ribeiro]

Meu avô itaparicano, o coronel Ubaldo Osório, jamais tocou em nada elétrico.

Relutou em instalar energia elétrica em casa e, quando queria acender uma lâmpada, requisitava alguém para acionar o interruptor (também chamado, de “xuíte”, pronúncia local do inglês “switch”) e mantinha distância.

Meu pai, genro dele, que adorava novidades tecnológicas, comprou um aparelho de barbear elétrico e o velho se recusava a entrar no banheiro enquanto aquele instrumento demoníaco estivesse lá dentro, ligado na tomada. E comunicou a sério que, se alguém se ensaiasse para encostá-lo na cara dele, reagiria à bala.

Quando surgiu a televisão e quiseram que ele assistisse, deu para se retirar da sala assim que alguém a ligava.

— Mas, coronel, o senhor vai gostar, aparece gente se mexendo e falando.

— Sei, sei, creio muito — respondia ele, já se levantando e olhando para outro lado. — Um dia destes, eu vejo.

Nunca viu, é claro.

Fico imaginando se não saí um pouco a ele. Devo ter saído, porque, apesar de não sentir medo de acionar xuítes e usar um computador para escrever, sempre encontrei uma certa dificuldade em assimilar novidades técnicas. Além disso, parece que tenho um talento especial para ler a respeito de calamidades de que os outros nunca ouviram falar. Por exemplo, li não sei onde que a ideia do forno de microondas surgiu quando a Marinha americana descobriu que o operador de um equipamento do qual vazavam micro-ondas teve seu diafragma cozido e só não morreu graças a não sei quantas operações e a um tratamento especializadíssimo. Certamente há algo de verdadeiro nessa história, pois o forno de micro-ondas tem porta de segurança porque funciona agitando as moléculas de água presentes nos corpos expostos a elas. Ou seja, considerando-se que o corpo humano tem mais de 70 por cento de água, aquele que se expuser a microondas ficará em pior estado que um sarapatel dormido. Até hoje, como meu avô com a televisão, prefiro sair da cozinha quando ligam o micro-ondas e ajo como os dentistas, que pulam lá para dentro quando fazem uma radiografia. Quem quiser que permaneça por perto, tendo seu diafragma cozinhado, eu espero na sala e não confio nos apitinhos do forno.

Quanto a telefones, contudo, eu me achava bem diferente de meu avô. Não faço como ele, que, quando não tinha jeito e precisava falar no telefone, mantinha o aparelho afastado da cara, alimentando a convicção expressa de que ele explodiria a qualquer momento. Eu também acho que vai explodir, mas falo com tranquilidade, fiado no destino. Entretanto, sou obrigado a reconhecer meu reacionarismo em matéria de celular, pois sou a única pessoa que conheço que não tem um.

Não estou seguro de que sobreviverei dessa forma muito tempo. O número do celular está começando a ficar tão universal que daqui a pouco será como o CPF, hoje exigido até para se tomar um cafezinho. O sujeito que confessa não ter celular é visto como um anormal certamente perigoso. Outro dia, uma repórter me telefonou e me deu essa impressão.

Ela queria fazer uma matéria sobre gente que não tinha celular e não achava ninguém, até que lhe disseram, para sua grande incredulidade, que eu devia ser o último habitante da cidade a não ter um celular. A sensação que me deu, depois da conversa, foi que ela desligou me achando muito estranho e resolvida a, se bater comigo na rua, me evitar como se evita um maluco capaz de qualquer coisa.

Mas, ao contrário do que ela certamente ficou pensando, não tenho ódio ao celular. Simplesmente acho que não preciso dele, como não precisei até hoje. Além disso, ele às vezes me deixa nervoso, por desencadear fenômenos para mim inexplicáveis e, às vezes, um pouco inquietantes.

Por exemplo, por que, assim que o avião para na pista de aterrissagem, todos os passageiros têm a necessidade imediata de falar no celular?

Não dá para esperar nem entrar naquele canudo de aeroporto, porque o pessoal vai tirando a maleta do porta-bagagem e com a outra mão ligando o celular.

Creio que dava para algum sociólogo fazer um trabalho sobre o assunto.

Não seria descabida a tese de que o povo brasileiro padece de uma ancestral carência telefônica, causada pelo tempo em que, para ter um telefone em casa, o sujeito precisava torrar a poupança, tomar financiamento a longo prazo e arrumar um pistolão. Claro que essa conversa de que é para ganhar tempo não tem a menor correspondência na realidade. Para começar, diversos amigos meus passam tanto tempo mexendo com os recursos do celular para ganhar tempo, que não têm mais tempo para nada.

O tempo necessário para aprender a usar recursos para economizar tempo é tanto que lhes toma todas as horas, livres e não livres, e um deles, que é m e i o obsessivo – compulsivo, descobriu que seu celular tem não sei quantos bagulhos para vender em suas mil lojas virtuais e não descansará enquanto não se inteirar de todos, item por item.

Continuo a resistir, mas receio que a luta está perdida. Até porque, como venho descobrindo, não é preciso ter celular para usá-lo. Há muito tempo não permaneço em lugar público nenhum sem ouvir conversas em celulares alheios, algumas das quais dão vontade no ouvinte de pedir que não o envolvam naquela confusão.

Já estive em cabines de elevador cheias onde parecia haver uma assembleia de papagaios, com todo mundo falando ao celular. Já vi gente conversando pelo celular dentro do mesmo restaurante.

Talvez o celular venha a substituir todas as outras formas de comunicação, quem sabe? Espero que haja mercado para redatores de torpedos, vou me qualificar.