quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A crise da cultura [Hannah Arendt]

O que é que faz com que nossos lares sejam hoje tão diferentes, tão encantadores?, Richard Hamilton. Colagem, 1956.


Os termos “cultura de massas” e “sociedade de massas” têm sido utilizados com um sentido fortemente pejorativos, como uma forma depravada da sociedade, designando uma espécie de Kitsch com uma dimensão intelectual. A América, berço das sociedades de massas, é culturalmente dominada pelo filistinismo cultural cultivado pelos novos ricos; na Europa, a cultura sempre foi mais associada a uma posição social e a um tipo de esnobismo cultivado pelas elites, derivado do seu passado histórico.

O aparecimento das sociedades de massa entronca na incorporação da população na sociedade, entendida como a boa sociedade cultivada pelas elites nos salões das cortes absolutistas. O precursor do homem de massas moderno é o indivíduo que se revoltou contra a boa sociedade, em oposição à qual se tenta afirmar. Enquanto nos “Estados de sociedade” a sociedade era constituída por classes restritas, na sociedade de massas, tecida pelas classes dominadas contra essa sociedade mais do que contra esse Estado ou governo, o indivíduo desespera pelo fato de a sociedade estar difundida por toda a população. Que os artistas se tenham rebelado contra a sociedade revela um antagonismo existente entre a sociedade e a cultura anterior ao aparecimento da sociedade de massas.

O mundo cultural abarca todo o passado relembrado por países, nações e pelo gênero humano. Quando os objetos imortais do passado se transformam em objeto de requinte social e individual, com uma posição social correspondente, perdem a sua mais importante qualidade: comover e extasiar o leitor ou o espectador perante o espetáculo que perpassa os séculos. As obras de arte são impropriamente utilizadas quando servem a educação ou a perfeição pessoal. A produção artística inspirada nestes princípios nasce do distanciamento das artes da realidade. A entorpecedora renascença das artes criadoras no nosso século começa a afirmar-se quando a boa sociedade perde o monopólio da empresa cultural. A cultura perde-se cada vez mais como valor em detrimento da sua instrumentalização social, transformada num meio de ascender a uma posição superior na sociedade. Torna-se num valor de troca. Quando tal acontece, inicia-se a transmutação e liquidação geral dos valores.

Se admitirmos esta liquidação geral dos valores e da tradição ocidental como um fato, percebemos que a tarefa de preservar o passado e a tradição é a mesma para a civilização ocidental. Tanto na Europa como na América, o peso da tradição esvanece-se e descobrimos o passado por nossa conta, lemos os autores do passado como se ninguém antes os tivesse lido. Nesta tarefa de preservação do passado, a sociedade de massas é mais perniciosa do que a anterior boa sociedade.

Talvez a diferença fundamental entre a sociedade de massas e a boa sociedade seja que a boa sociedade protege a cultura, valorizando e desvalorizando as coisas culturais como mercadorias sociais, usando-as e abusando delas para os seus próprios fins, sem nunca as consumir. A sociedade de massas não protege a cultura, mas os lazeres e os artigos oferecidos pela indústria do lazer são consumidos pela sociedade como todos os outros objetos de consumo.

Estendem-se cada vez mais os tempos de lazer e a indústria do lazer preenche essa necessidade. É pura hipocrisia ou esnobismo social negar ao ser humano o direito de divertimento, mas os critérios e as fórmulas que regem a indústria do lazer são diferentes dos que norteiam a cultura. Assistimos hoje a uma sociedade sedenta de novos lazeres a apoderar-se da cultura para a adaptar à indústria do lazer. O que não significa que a cultura se dissemina pelas massas, mas sim que a cultura se pode anular quando procura servir o lazer. Os grandes autores do passado sobreviverão a séculos de abandono e esquecimento, mas é uma questão pendente saber se serão capazes de sobreviver numa função de lazer.

A principal característica de um objeto cultural não é a sua função, mas a sua durabilidade. Ora a cultura encontra-se ameaçada quando os objetos ou coisas do mundo são tratados como funções num processo vital da sociedade, como se existissem para satisfazer uma necessidade.

No mundo fabricado pelo homem temos de distinguir os objetos de uso e as obras de arte. Ambos possuem certa permanência que vai da duração ordinária a uma imortalidade potencial no caso da obra de arte. Do ponto de vista da duração, as obras de arte são claramente superiores a todas as outras coisas. E contudo, são as únicas coisas que não têm qualquer função no processo vital da sociedade. Somente as coisas que existem independentemente de toda a referência utilitária e funcional podem merecer o epíteto de obras de arte, já que o critério de juízo de uma obra de arte é a sua beleza perante uma atitude desinteressada.

Não existe propriamente uma cultura de massas, mas lazer de massas que se alimenta dos objetos culturais. Crer que tal sociedade será mais cultivada com o tempo e o trabalho da educação é um erro fatal. Uma sociedade de consumidores não é capaz de compreender a arte porque a sua atitude central perante todos os objetos, a atitude de consumo, implica a ruína de tudo em que toca.

A palavra “cultura”, de origem romana, deriva de colere, cultivar, cuidar, preservar, e remete-nos para o comércio do homem com a natureza, para o sentido da cultura e da preservação da natureza em função do homem. O primeiro a utilizar a palavra foi Cícero, que falava da cultura animi no sentido em que falamos hoje de um espírito cultivado. Mas para a generalidade dos romanos, cultura designava fundamentalmente uma conexão com a natureza, particularmente na agricultura. A arte devia nascer tão espontaneamente como o campo, devia ser cultivada.

Os gregos não tinham nenhuma palavra equivalente ao conceito romano, já que nessa civilização predominavam as artes de fabricação. Enquanto os romanos consideravam a arte como uma espécie de agricultura, de cultura da natureza, os gregos encaravam a agricultura como um elemento de fabricação, uma prática ligada aos artifícios técnicos e engenhosos pela qual o homem dominava a natureza.

Para os gregos, o que os distinguia dos bárbaros era a polis e a política. Paradoxalmente, para os gregos a falta de virilidade ou o vício da moleza, que na nossa civilização tem sido associado ao amor exacerbado pelo belo no sentido estético, era o perigo da filosofia; o saber ver ou o saber julgar era uma condição necessária na relação com o belo.

Poderá a filosofia no sentido que os gregos lhe davam conduzir à inação mais que ao amor pelo belo? Será que o amor pelo belo se barbariza quando não acompanhado pela capacidade de discernir, de julgar, pelo gosto? Não terá esse amor pelo belo algo a ver com a política?

A desconfiança e o desprezo em relação aos artistas provêm de considerações políticas: a fabricação das coisas, que compreende a produção da arte, não faz parte das atividades políticas, havendo mesmo uma oposição entre as duas. Os gregos suponham que o filistinismo ameaçava não só a política, mas também o domínio cultural , já que ele conduzia a uma desvalorização das coisas julgadas em função de critérios de utilidade e não pelo seu valor intrínseco.

Em Roma, os artistas e os poetas perseguiam um jogo pueril que não se coadunava com a gravidade, seriedade e dignidade próprias de um cidadão romana. Em Atenas, pelo contrário, o conflito entre a política e as artes nunca foi definido em benefício de uma dessas atividades, razão pela qual a Grécia Clássica viveu um extraordinário período em termos artísticos.

Atualmente, temos tendência para supor que é a política e a participação ativa nas coisas públicas que engendra o filistinismo e impede o desenvolvimento de um espírito cultivado, capaz de considerar as coisas pelo seu verdadeiro valor e não pela sua utilidade. A mentalidade de fabricação invadiu o domínio político; fabricantes e artistas puderam dar livre curso às suas visões sobre o sujeito e articular a sua hostilidade contra os homens de ação.

O conflito entre artistas e políticos define-se assim: por um lado, o artista, procurando fórmulas novas e coisas novas, deve afastar-se do público para realizar os seus intentos; por outro lado, o político só pode ambicionar realizar-se através do público. A cultura e a política, não obstante os seus conflitos e as suas tensões, estão ligados e em dependência mútua. O seu elemento comum é que ambos são fenômenos do mundo público.

Para compreendermos o fenômeno do gosto, o fenômeno estético ou a fruição do belo, devemos recordar o imperativo categórico da moral kantiana: “Age de tal modo a que a máxima da tua ação possa instituir-se como princípio de uma legislação universal”. Este princípio, aplicado na CRÍTICA DA FACULDADE DE JULGAR, prevê que o indivíduo seja capaz de pensar do ponto de vista de qualquer outro; a faculdade de julgar reside num potencial acordo outrem, e é desse potencial acordo que retira a sua validade específica. O que quer dizer, por um lado, que tal julgamento se deve libertar das condições subjetivas privadas, das idiossincrasias que determinam a perspectiva de cada indivíduo em privado. Assim, o juízo é dotado de certa validade específica, mas nunca é universalmente válido. O juízo, diz Kant, é válido para toda a pessoa singular que julga, mas não é para os que não julgam, nem para aqueles que não são membros do domínio público onde os objetos de juízo aparecessem.

Consequentemente, o julgamento é uma das faculdades fundamentais do homem como ser político, na medida em que lhe orientar no domínio público. O gosto julga o mundo na sua aparição e no seu mundanismo: o seu interesse é puramente desinteressado, já que nem os interesses vitais do indivíduo, nem os interesses morais do eu entram aqui em jogo.

Tudo se passa como se o gosto decidisse não apenas como ver o mundo, mas também como se colocar nele. Se pensarmos nesta colocação, ou nesta pertença, em termos políticos, somos tentados a conceber o gosto como um princípio de organização essencialmente aristocrático. É justamente no domínio da ação e da palavra que esta qualidade pessoal vem ao de cima publicamente, mais até que as suas qualidades e talentos pessoais.

O gosto desbarbariza o mundo do belo ao não se deixar submergir por ele, cuidando do belo à sua própria maneira: o gosto é a faculdade política que humaniza realmente o belo e cria uma cultura.

Texto escrito em 1961.


Hannah Arendt, nascida como Johanna Arendt (Hanôver, Alemanha, 14 de outubro de 1906 – Nova Iorque, Estados Unidos, 4 de dezembro de 1975), filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. Entre suas principais obras estão as seguintes: A Vida do Espírito, Sobre a Revolução, O Homem em Tempos Sombrios, A Condição Humana, A Crise da República, Eichmann em Jerusalém.

2 comentários:

  1. Interessante: soa como uma revolta neutra e ao mesmo tempo um visão singularmente frágil diante de um monstro foraz que nos deixa cegos e surdos antes de nos devorar.

    Ronaldo

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  2. foraz -> voraz (pardon)

    Ronaldo

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