O feminismo foi uma grande revolução cujos resultados continuam a merecer análise. Historicamente afirmado como um conjunto de procedimentos teóricos e práticos que pretendiam tanto ajudar na demolição dos preconceitos que impediam o alcance de direitos das mulheres, quanto desmanchar uma imagem da mulher como subalterna do homem, o feminismo chegou ao século 21 dito de muitos modos. É possível amá-lo e odiá-lo, mas não negar seus efeitos. Um dos efeitos mais curiosos do feminismo diz respeito à visão que os homens passaram a fazer de si mesmos e ao modo como são hoje representados por mulheres. Vejamos o que isto quer dizer.
Todas as correntes do feminismo desde o século 18 questionaram o lugar das mulheres como objetos dos homens. Dizer que mulheres são “objeto” para homens significa que eles, como sujeitos do conhecimento e da ação, fariam das mulheres meras “coisas” manipuláveis ou sobre as quais exerceriam sua posse. O feminismo levou a uma mudança de postura das mulheres que puderam, elas mesmas, se tornar “sujeitos” de suas próprias vidas e da história. O modo como mulheres eram vistas foi o que entrou em colapso com os feminismos. Os primeiros feminismos, de mulheres como Olympe de Gouges e de homens como Condorcet (sim, sempre existiram, ontem como hoje, homens feministas) podem ser considerados no contexto da luta pelo respeito quanto à identidade das mulheres que implicava seus direitos de cidadãs. No século 20, o cerne das lutas passou a ser a compreensão da não-identidade como um novo passo rumo à liberdade. O feminismo tornou-se a consciência da construção do “segundo sexo” com Simone de Beauvoir quando o próprio conceito de “mulher” foi posto em crise.
O que dá fundamento ao feminismo como teoria do conhecimento é a análise das representações das mulheres. O ideal da “mulher” como essência, foi alvo da crítica dos chamados feminismos da igualdade que sabem o que implica em termos de poder uma representação tanto para o bem quanto para o mal dos representados.
É uma postura comum dos feminismos contemporâneos a defesa de que já não existe o grupo representativo que entendíamos antes por “mulheres”. O combate à universalidade categórica que apenas favorece a estrutura da dominação foi uma ação responsável do feminismo autodesconstrutivo, aquele que se chama feminismo enquanto rememoração de um tempo em que a luta era pelos direitos das mulheres. Hoje está em jogo inclusive o direito de não pertencer ao estereótipo “mulher”. No passado Mary Wollstonecraft dizia que o feminismo era uma luta pelos direitos da humanidade. A filósofa incluía homens e mulheres na sua noção de “humanidade”, em contraposição a filósofos do Iluminismo (por exemplo, Kant) que definiam a humanidade pela hegemonia masculina em que as mulheres seriam inclusas apenas enquanto dependentes dos homens.
Debates, pesquisas e publicações sobre masculinidade mostram que a discussão sobre a identidade dos homens evolui dia após dia. Tal busca auto-reflexiva, no entanto, não seria possível sem o feminismo. O “masculinismo” nascente deriva da autoconsciência dos homens sobre sua condição à deriva diante da revolução vivida pelas mulheres. Neste sentido, podemos dizer que os homens seguem o exemplo das mulheres. Mais que isso, no entanto, obrigam-se a pensar e analisar sua própria condição diante da perda de seu objeto. A revolução masculinista que envolve a auto-reflexividade dos homens está inserida na ética feminista que obriga hoje a olhar para o modo como não apenas as mulheres, mas também os homens foram representados. Exigem-se hoje certas releituras da história.
Bom exemplo para isto é Mme. Bovary de Gustave Flaubert. Em meados do século 19 Flaubert traduziu na imagem de uma mulher em crise com sua condição de classe, de esposa, e mesmo de amante a condição feminina em seu drama e tragédia. Emblema do desejo insatisfeito e da perturbação com a banalidade da vida burguesa, Emma é a imagem de uma mulher que se auto-aniquila diante de seus homens e nos mostra a alegoria de uma espécie de vida contra-ética, a vida que poderia ser diferente. Emma, filha, esposa, mãe e amante infeliz, não precisaria ter sofrido o que sofreu em tempos de direitos das mulheres.
Assim foi que Flaubert, que confessou se confundir com a personagem e nos colocou para sempre na posição de perscrutadores do significado desta metáfora, representou a mulher casada, a infeliz mulher do século 19 que não tinha chance de qualquer experiência fora do reduto do lar, da casa, da pequena cidade, da maternidade, do casamento, da classe social a que pertencia, e que não fez do adultério algo menos medíocre. Emma, a protagonista, merece releitura. Se ela é o foco central em torno do qual transita toda a trama, é importante lembrar que ela não existiria sem os homens que a acompanham em suas aventuras e desventuras.
É para estes homens que hoje é preciso olhar. Se um dos efeitos do feminismo é que os homens aprenderam a questionar a si mesmos, devemos nós também prestar mais atenção aos homens no sentido de perceber como foram representados, ou como se representam a si mesmos. Não é apenas Emma que é construída, mas que todos os homens ao seu redor são figuras cujas características fazem deles imagens essenciais mesmo que acinzentadas diante do brilho da protagonista. A histeria de Emma está intimamente ligada à fraqueza dos homens ao seu redor. Homens marcados pela falta. Do marido, o ingênuo e sem perspectivas Charles Bovary, que a ama e a ela se dedica como o simples esposo que ela repudia, aos amantes Leon e Rodolphe, que representam o alter-ego subdividido de Emma, tão românticos e devassos quanto irresponsáveis e sonhadores, todos são emblemáticos de uma falta que não pode ser suprida. Ela os supre apenas como amante, assim como ao marido a quem, na verdade, nada parece faltar já que integrado ao casamento. No entanto, jamais é suprida por nenhum deles. Nenhum é capaz de aquietar seu desejo marcado pelo insaciável. Nenhum deles corresponde ao sonho.
Os homens de Mme. Bovary não representam nenhuma solução, ao contrário, são todos anti-heróis afins à heroína que a eles se relaciona. Juntos, compõem um mosaico da condição subjetiva que, naquele tempo, veio à luz: a vida do desejo é mais que a da falta, é a da perda de qualquer esperança de que um dia homens e mulheres, juntos, possam forjar a união total. Flaubert, no entanto, faz a todos aqueles homens diferentes de Emma em um ponto fundamental: a vida da angústia que a torna a protagonista, não lhes pertence e isso define o saber infeliz de Emma que culmina na velha solução feminina – mas não feminista, pois seria uma espécie de decisão “de mulherzinhas” - que é o suicídio.
Devemos reter da leitura deste livro o fato de que os homens são aí representados como fracos, covardes e impotentes. Numa cultura que supera em alguns aspectos a divisão sexista do patriarcado, as mulheres deixam de ser os únicos seres representados como fracos. Há uma mudança na economia das representações.
Lélia Almeida em um artigo sobre a escritor uruguaia Cristina Peri Rossi, autora e “La Nave de los Locos”, ao analisar a formação do personagem Equis (nome da letra X) chama a atenção para algo que os feminismos ainda não se deram conta, a forma como “mulheres” podem construir personagens “homens”. O que está em jogo hoje é uma inversão radical no campo da economia política da representação. As mulheres aprenderam o poder das representações e, cada vez mais perto do poder, passaram a representar.
Está em jogo um novo olhar e um posicionamento crítico no lugar antes ocupado por um “objeto”. No livro de Peri Rossi, o personagem Equis representa o homem do novo tempo, aquele que não sabe de onde veio nem para onde vai, aquele que se depara com a multiplicidade das sexualidades e aprende a conviver com ela. Equis é um novo sujeito de experiência. Aquele que, na narrativa, é incapaz de decidir se uma mulher é um homem, um travesti ou uma mulher, justamente porque este tipo de construção já não vem ao caso diante da singularidade que se tornou direito de cada indivíduo.
Infelizmente a histeria masculina que se realiza na violência, na prepotência e na queixa contra as novas formas de se ser “mulher”, inclusive aquela que abdica da inscrição em um gênero, ainda precisa ser analisada e desmontada. Muitos homens apegados à inscrição no gênero masculino são tocados narcisicamente pelo feminismo. No entanto, o feminismo continua atual e capaz de sinalizar para uma autoconsciência deste novo sexo frágil que não assume sua própria fragilidade. Neste caso, o feminismo é o melhor espelho do homem.
Márcia Tiburi é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicou as antologias As Mulheres e a Filosofia (Editora Unisinos, 2002), O Corpo Torturado (Ed. Escritos, 2004), e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero (Edunisc). Publicou os ensaios Uma outra história da razão (Ed. Unisinos, 2003), Diálogo sobre o Corpo (Escritos, 2004), Filosofia Cinza - a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004), Metamorfoses do Conceito (ed. UFRGS, 2005). Publicou os romances Magnólia (2005) e a Mulher de Costas (2006), da série Trilogia Íntima (Ed. Bertrand Brasil).
Um texto bastante interessante. Vou indicá-lo para alguns amigos...
ResponderExcluirAh! Pelo seu blog é claro.
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Sanjesptty