quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Eu não gosto mais de música [Henrique Wagner]

Há algum tempo não gosto de música. Não gosto nem mesmo da música que eu gosto. Simplesmente não gosto de música. A Bahia foi minha escola, meu liceu, nesse processo de ojeriza aos sons mais ou menos orquestrados e distribuídos em pautas pela cidade. Depois ainda chamam João Gilberto de ingrato por viver fora do Brasil e não voltar com freqüência a Bahia, um homem com aquele ouvido apurado. Pois bem, é bom que se diga mais uma vez, como num ritornelo: a Bahia me ensinou a não gostar de música. Da capo.

“Moro numa cidade cheia de ritmo” e sem a menor consciência de preservação do ritmo de cada um. Música é arte, e desse modo, assim como foi dado o direito às baianas de acarajé de ocuparem qualquer lugar da cidade com uma guia, os “músicos” baianos fazem soar todos os seus acordes em tudo quanto é espaço da cidade de Salvador. Não sei como a coisa funciona noutras cidades da Bahia. Na capital, pelo menos, há música nos ônibus, em restaurantes, centros comerciais, cafés etc. E agora, há mais ou menos três meses, instalaram uma rádio comunitária no bairro 2 de Julho, onde moro há cerca de um ano e meio. O som começa às 8 da manhã e termina às 8 da noite. Ouço músicas de José Augusto, Joana, Restart, Luan Santana, Daniel, Roupa Nova, dentre outros petardos, durante doze horas diárias. Detalhe: a programação é a mesma, todos os dias. Às vezes tento jogar o jogo dos sete erros, mas não consigo: falta-me concentração.

Minha vida virou um musical. Eu sou a Mary Poppins, quando vou à padaria, quando vou à lanchonete, quando visito meu amigo Jorge, da Mutantes – loja de discos; o coitado do Jorge “ganhou” uma caixinha de som bem à frente de sua casa, instalada, a caixinha, num poste moribundo. Às vezes sento à mesa da padaria Bola Verde, no final da tarde, em encontros divertidos e salutares com os amigos Sergio Guedes – fundador do ponto de encontro – e Raimundo Áquila, e a música continua, dando outras cores ao gato pardo.

Em tempo: as caixas de som não foram instaladas apenas no bairro 2 de Julho, mas também na Avenida Carlos Gomes e na Rua da Piedade. Carnaval na Bahia é ou não é o ano inteiro? Localizei o idealizador da originalíssima idéia e ele me disse que a rádio é fruto do desejo dos moradores de melhorar a vida no bairro. Ora, mas eu não conheço um morador sequer que tenha tido conhecimento da criação dessa rádio. Fiz uma pesquisa entre comerciantes e ninguém sabia de nada. Amigos meus que moram nesse bairro cheio de gente boa de teatro, poetas, escritores, intelectuais, desconhecem completamente o acontecimento de alguma assembléia, reunião, tertúlia que tivesse como pauta a instalação de uma rádio comunitária.

E quem precisa de mais música no mundo? Sobretudo em Salvador? Portanto, quem precisa de uma rádio tocando música por doze horas, sem que ninguém tenha chance de mudar de estação? Todo aparelho hoje vem com rádio embutido. Celulares andam infernizando a vida de passageiros de ônibus, com seus rádios ligados em volume máximo, durante toda a viagem. E há ainda os carrinhos, outrora de café, que atualmente vendem cds piratas e parecem trios elétricos, com um poder sonoro de causar inveja a lojas de eletroeletrônicos. Os camelôs têm suas tevês ligadas o dia inteiro, tocando os vídeos musicais que pretendem vender. Na Rua da Forca, em finais de semana, um sujeito abre o fundo do carro e liga o som numa altura digna de Embalos de Sábado à Noite, mas é claro que não toca Bee Gees. Entende o leitor por que é que não gosto mais de música? Eu não quero ouvir nem mesmo a mais bela sonata de Beethoven. Acabou. Enquanto eu não transfiro residência para marte – talvez plutão seja mais silencioso –, podem tocar até hino de time de futebol. Isso porque ainda não achei provas da existência do Horizonte Perdido de James Hilton, a Shangri-la dos lamas centenários. Sim, os chicreteiros venceram. René Guenón já dizia tudo isso, em outras palavras, na década de 1920, em livros como A crise do mundo moderno e O reino da quantidade. Eu, no entanto, nasci em 1977.

O 2 de Julho segue sem segurança, sem higiene, sem silêncio. Há quem diga que a instalação da rádio comunitária custou 32 mil reais e foi bancada por um deputado. Nada mais plausível. A rádio, há alguns dias, começou a divulgar um número de telefone para quem quiser anunciar serviços e produtos. Entendo... Em 2012 haverá eleição para vereador.

Quem atravessa a Avenida Carlos Gomes e a Avenida Sete chega facilmente à tão maltratada Praça da Piedade, outrora chamada Praça do Hospício. Lá encontrarão um “negócio” – pense o leitor no duplo ou triplo sentido da palavra – chamado MOCPOP. Traduzindo o acrônimo: Movimento de Ocupação Cultural de Poetas e Poetisas. Bonitinho, não? É de amolecer o coração até de um Fidel Castro, um Pinochet, uma Maria Bethania. Mas não amoleceria o coração de Antonio Carlos Magalhães, que entendia de máscaras, fachadas, painéis e embelezamento superficial da cidade.

Confundindo democracia com anarquismo – não me refiro, é óbvio, ao anarquismo de Proudhomme e seus pares –, o tal movimento arma sua tenda mais ou menos às 9 da manhã e fica até fechar os portões da praça. Começaram com uma mesa quadrada – onde expunham livros de poesia baiana –, uma caixa de som e recitais de poesia assustadoramente ruins, tanto pela má qualidade da poesia recitada quanto pela trágica performance dos “poetas”. O “negócio” cresceu: hoje há cerca de quatro mesas dispostas de modo a parecer uma única mesa de aniversariante em pizzaria, repletas de livros baianos custando, cada um, entre dez e quinze reais. Só desligam o som quando o substituem por algo pior do que as canções que são tocadas em altíssimo volume: é hora de ouvir a gritaria dos “poetas” marginais, que em verdade parecem loucos fugindo do alienista. Tudo é mal feito, de mau gosto. O microfone é usado em volume impressionantemente alto. E todos são obrigados, por conta da democracia, a ouvir música ruim e poemas ainda piores, gritados por “artistas” vestidos de preto. Se a praça é do povo, por que não dão ao povo o que é do povo, ou seja, opção, diversidade, segurança? – segurança, inclusive, contra poeta; eu, por exemplo, morro de medo de poeta, e gostaria muito de ser protegido da liberdade, da democracia, da boa intenção de um poeta.

Um dado a mais: há uma moça italiana que recebe um valor diário para trabalhar para o movimento, vendendo livros. Eu não disse que o “negócio” havia crescido? O movimento de ocupação poética da praça tem ponto em um dos lugares mais bem localizados da cidade, não paga aluguel nem impostos, tampouco luz, e tudo isso porque se trata de um movimento cultural – ou seja, uma espécie de baiana do acarajé. Houve um dia em que trouxeram um tecladista que tocou e cantou arrocha! E isso num volume altíssimo – como sempre, porque mau gosto jamais foi discreto. Havia uma pessoa na platéia, nesse dia, e era uma mendiga, dançando quase sem roupa, mas sem o corpo da nova loira do Tchan.

Salvador já foi eleita a cidade mais barulhenta do Brasil. Mais de uma vez, aliás. Na Praça da Piedade, outrora Praça do Hospício, os aposentados tentam, em vão, ouvir o silêncio deixado pelos camaleões.


Henrique Wagner é baiano de Salvador, onde reside. Nascido no dia 16 de maio de 1977, é poeta, contista, ensaísta e crítico de cinema. Colaborou com os jornais A TARDE, Correio Brasiliense, Rascunho, entre outros. Publicou os livros de poemas O grande pássaro e As horas do mundo, e o livro de ensaio A linguagem como estética do pensamento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário