A repetição, diz Hegel, desempenha um papel crucial na história: quando algo acontece uma vez apenas, pode ser visto como simples acidente, algo que poderia ter sido evitado se a situação tivesse sido tratada de outra maneira; mas, quando o mesmo fato se repete, é sinal de que um processo histórico mais profundo está em ação.
Quando Napoleão foi derrotado em Leipzig, em 1813, pareceu que tinha sido azar; quando ele voltou a ser derrotado em Waterloo, ficou claro que seu tempo acabara.
A mesma coisa aplica-se à crise financeira contínua. Em setembro de 2008, foi descrita como uma anomalia que poderia ser corrigida com uma melhor regulamentação etc.; agora, o acúmulo de sinais de um derretimento financeiro repetido deixa claro que estamos diante de um fenômeno estrutural.
Embora os recentes tumultos no Reino Unido tenham sido desencadeados pela morte em circunstâncias suspeitas de Mark Duggan, todo mundo concorda que eles exprimem um mal-estar mais profundo – mas de que tipo? Como no caso dos incêndios de carros na periferia de Paris em 2005, os saqueadores no Reino Unido não tinham mensagem clara a transmitir.
É por isso que é difícil conceber os participantes nos tumultos no Reino Unido em termos marxistas, como, por exemplo, a emergência do sujeito revolucionário; eles cabem muito melhor na noção hegeliana da “turba”, os que se situam fora do espaço social organizado, que podem exprimir sua insatisfação apenas por meio de explosões “irracionais” de violência destrutiva – o que Hegel chamou de “negatividade abstrata”.
Nos é dito que a desintegração dos regimes comunistas no início dos anos 1990 assinalou o fim das ideologias. Se o truísmo de que vivemos em uma era pós-ideológica é verdadeiro em qualquer sentido, isso pode ser visto nessa explosão recente de violência. Foi uma ação violenta que não reivindicou nada.
O fato de os manifestantes não terem um programa é, portanto, um fato a ser interpretado em si mesmo: ele nos revela muito sobre nosso dilema ideológico-político e sobre o tipo de sociedade em que vivemos: uma sociedade que celebra a escolha, mas na qual a única alternativa disponível ao consenso democrático é a violência cega.
A oposição ao sistema não pode mais se articular na forma de uma alternativa realista ou mesmo de um projeto utópico – pode apenas assumir a forma de uma explosão destituída de sentido. De que adianta nossa tão celebrada liberdade de escolha quando a única escolha é entre jogar segundo as regras e a violência autodestrutiva? Talvez este seja um dos maiores perigos do capitalismo: embora, pelo fato de ser global, abarque o mundo inteiro, ele sustenta uma constelação ideológica “sem mundo” na qual as pessoas são privadas de suas maneiras de localizar sentido.
A primeira conclusão a ser tirada da turbulência no Reino Unido, portanto, é que as reações a ela, tanto as conservadoras quanto as liberais, são inadequadas. A reação conservadora foi previsível: não há justificativa para vandalismo desse tipo; para prevenir outras explosões assim, precisamos não de mais tolerância e ajuda social, mas de mais disciplina, trabalho árduo e senso de responsabilidade. O que está errado nesse relato não é apenas que ele ignora a situação social desesperadora que empurra os jovens a lançar-se em explosões violentas, mas que ignora o modo como essas explosões ecoam as premissas ocultas da própria ideologia conservadora.
Pois o que vimos nas ruas britânicas durante os tumultos não foram homens reduzidos a “bestas”, mas à forma despida, fundamental, da “besta” produzida pela própria ideologia capitalista. Enquanto isso, os liberais de esquerda, previsivelmente, se apegaram a seu mantra sobre o descaso em que caíram os programas sociais e iniciativas de integração: explosões de violência são os únicos meios que possuem para articular sua insatisfação. Mas o problema desse relato é que ele apresenta apenas as condições objetivas para os tumultos. Provocar um tumulto é fazer uma afirmação subjetiva, declarar implicitamente como a pessoa se relaciona com suas condições objetivas.
Vivemos em tempos cínicos. É fácil imaginar um manifestante que, flagrado saqueando e queimando uma loja e pressionado para que explique suas razões, responda na linguagem empregada por assistentes sociais e sociólogos, citando a mobilidade social menor, a insegurança crescente, a desintegração da autoridade paterna e a falta de amor materno em sua primeira infância. Ele sabe o que está fazendo, portanto, mas o faz mesmo assim. Mas não faz sentido ponderar qual dessas duas reações, conservadora ou liberal, é a pior. Também aqui devemos rejeitar a exigência de que tomemos partido. A verdade é que o conflito foi entre dois polos de desprivilegiados: aqueles que conseguiram funcionar dentro do sistema versus aqueles que estavam frustrados demais para continuar tentando.
Assim, a violência dos saqueadores foi dirigida quase exclusivamente contra suas próprias comunidades. Os carros incendiados e as lojas saqueadas não estavam em bairros ricos, mas nos bairros dos próprios saqueadores. Zygmunt Bauman caracterizou os tumultos como atos de “consumidores deficientes e desqualificados”: mais que tudo, foram uma manifestação de um desejo de consumo concretizado violentamente quando foi incapaz de se realizar da maneira “apropriada”, ou seja, fazendo compras.
Como tais, os tumultos também contêm um momento de protesto genuíno, sob a forma de uma resposta irônica à ideologia do consumo: “Vocês nos mandam consumir e ao mesmo tempo nos privam dos meios de fazê-lo apropriadamente – então estamos aqui, consumindo do jeito que conseguimos!”. Os tumultos são uma demonstração da força material da ideologia – ou seja, a “sociedade pós-ideológica” talvez seja uma falácia. De um ponto de vista revolucionário, o problema dos tumultos não é a violência em si, mas o fato de a violência não ser verdadeiramente autoassertiva. É raiva e desespero impotentes sob o disfarce de uma exibição de força. Os tumultos deveriam ser situados em relação a outro tipo de violência que a maioria liberal hoje apreende como uma ameaça a nosso modo de vida: ataques terroristas e explosões suicidas. Em ambos os casos, a violência e a contraviolência estão presas em um círculo vicioso, cada uma gerando as forças que procura combater. A diferença é que, em contraste com os tumultos no Reino Unido ou em Paris, ataques terroristas são realizados a serviço do sentido absoluto dado pela religião.
Infelizmente, o verão egípcio de 2011 será lembrado como tendo marcado o fim da revolução, um tempo em que seu potencial emancipador foi sufocado. Seus coveiros são o Exército e os islâmicos. Os contornos do pacto entre o Exército (que era o Exército de Mubarak) e os islâmicos (que foram marginalizados nos primeiros meses do levante, mas agora vêm ganhando terreno) estão cada vez mais claros: os islâmicos vão tolerar os privilégios materiais do Exército e, em contrapartida, vão ganhar hegemonia ideológica. Os perdedores serão os liberais pró-ocidentais, fracos demais para “promover a democracia”, além dos verdadeiros agentes dos acontecimentos da primavera: a esquerda secular emergente que vem tentando montar uma rede de organizações da sociedade civil, de sindicatos a feministas.
A situação na Grécia parece mais promissora, provavelmente graças à tradição recente de auto-organização progressista (que desapareceu na Espanha após a queda do regime de Franco). Mesmo lá, porém, o movimento de protesto mostra os limites da auto-organização: os manifestantes sustentam um espaço de liberdade igualitária sem uma autoridade central que a regulamente, um espaço público no qual eles recebem a mesma quantidade de tempo para falar, e assim por diante.
Quando os manifestantes começaram a debater o que fazer a seguir, como avançar além dos meros protestos, o consenso da maioria foi de que era preciso não um novo partido ou uma tentativa direta de tomar o poder do Estado, mas um movimento cuja meta fosse exercer pressão sobre os partidos políticos. Isso, evidentemente, não é o suficiente para impor uma reorganização da vida social. Para isso é preciso um corpo político forte, capaz de tomar decisões rápidas e implementá-las com a rigidez necessária.
Publicado em 02 de setembro de 2011
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, autor de Em Defesa das Causas Perdidas (Boitempo). A íntegra deste texto saiu no London Review of Books
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