Maestro, queria saber qual o seu ponto de vista sobre a crise na indústria fonográfica do começo desse século?
Júlio Medaglia - Essa crise vem da pura falta de competência de quem está na cúpula das empresas. Todos os bens de consumo que se produzem no mundo - sejam eles culturais ou não - evoluem e ganham dimensões astronômicas. Já tive 20 celulares, 50 automóveis, e todos nós sabemos que a indústria precisa ser cada vez mais criativa para sobreviver. Na área musical, justamente nesse momento em que são criadas cada vez mais condições para um fácil acesso aos bens culturais, a indústria baixou o nível de tal forma, que chegamos a um grande estado de indigência. E a indústria ainda tem a cara de pau de eleger seus bodes expiatórios para justificar a crise! É o rapazinho da esquina que vende o disco pirata ou a internet. Como se a merda de música que eles produzem e querem vender não tivesse nada a ver com essa crise.
Então, é o caso de concluir que a indústria deu um tiro no pé?
J.M. - Isso é culpa de quem está na direção dessas grandes empresas. Gente que não sabe dialogar com o talento. A TV Record fez aqueles famosos festivais e eu, que participei de todos eles, posso garantir que o melhor deles foi o de 1967, que até virou filme agora (o documentário Uma Noite em 1967). Esse festival deu mais de 94 pontos de audiência. Foi parar no Guiness Book, e o Paulinho Machado de Carvalho - presidente da Rede Record na época - chegou a pedir uma cópia do boletim ao Ibope. Pôs em um quadro e o pendurou na parede em frente à mesa de seu escritório. Isso significa, entre outras coisas, que o povo brasileiro não é imbecil nem antimusical. A indústria cultural é que não está sabendo manipular a sensibilidade e a inteligência musical do brasileiro. A música saiu da mão dos criadores e passou para a mão dos produtores. As grandes gravadoras que ainda existem, não apostam mais em diretores artísticos. Gostam mesmo é dos diretores de marketing. E o pior é que isso não acontece apenas no Brasil. É um fenômeno mundial. Experimente ligar um rádio na Europa para saber do que estou falando.
E o que há de errado quando chegamos à conclusão de que esse é um problema universal?
J.M. - O problema é que os meios de comunicação desaprenderam a lidar com a música. Havia uma íntima relação entre a produção e o consumo. Um pingue-pongue que ia de um lado para outro, com muita facilidade. Em função do consumo e de sua própria repercussão, o processo evoluía naturalmente. Então, não adianta fazer um festival como o que a Globo fez em 1985. Encheu de produção, coisas que desciam do teto, purpurina. Não adianta forçar a barra e esperar que seja criado algo que não vai acontecer. Felizmente, está muito fácil produzir hoje em dia. O cara tem em casa meia dúzia de maquininhas eletrônicas maravilhosas, e ele mesmo produz seu disco, faz capa e mixa. Uma possível música do futuro, de qualidade, vai ser feita cada vez mais por esforços individuais. Tem de vir de baixo para cima, pois de cima para baixo não vem nada.
A internet tem sido, então, a grande vilã da indústria, não só do ponto de vista do consumo de música, como do controle da produção. É ela mesma que vai apontar as saídas para a crise?
J.M. - Como diria nosso filósofo corintiano, Vicente Matheus, a internet é uma "faca de dois legumes". É das coisas mais maravilhosas que o ser humano já inventou, mas não podemos nos esquecer de que ela é um gigante banco de dados à espera de um curioso. Ela não provoca. A grande provocação ainda vem pelos meios de comunicação tradicionais, sobretudo a televisão e o rádio. O problema é que o mercado não está provocando mais nada. Os meios de comunicação se fecharam para qualquer tipo de música inteligente. A internet tem um mundo de possibilidades, mas o que as pessoas consomem, em termos de música, ainda é algo fundamentalmente provocado por meios comerciais. A Crítica da Razão Pura, de Kant, está em sua íntegra na internet, e nem por isso todo mundo virou filósofo. Havia no mercado musical a provocação de uma música de qualidade. As pessoas ouviam, eram provocadas e aquilo ia se multiplicando na formação de um repertório cultural cada vez melhor. Na Europa, o fato de ser um lixo a programação do rádio e da tevê é algo muito compreensível. Eles não têm cultura popular. Nós, latino-americanos - e especialmente os brasileiros -, temos uma cultura popular riquíssima. Aliás, arrisco dizer que os Estados Unidos são os mais pobres do mundo em matéria de raízes. Eles têm aquele countryzinho vagabundo do violino estridente, têm o rock, que veio do rhythm'n'blues, e têm o jazz.
E essa nova geração de ouvintes e artistas, supostamente repleta de informação, não poderia ser protagonista de uma nova reviravolta?
J.M. - Não tenho muita esperança no jovem de hoje, pois ele não está nem um pouco interessado em viver em estado crítico. Estão fechados em seu individualismo e pouco se lixando para os rumos do País. O máximo que fazem é algo incipiente, como o que aconteceu em Brasília. Pararam a universidade, suspenderam as atividades por semanas e destruíram parte do prédio, porque o jornal das oito delatou que o reitor comprou um cinzeiro de mil reais. No entanto, essa é a mesma capital em que Sarney, Collor, Renan Calheiros e toda essa corja circula tranquilamente sem que ninguém faça nada para insultá-los. Minha geração foi mais agressiva. Teve um pouco mais de vergonha na cara e não hesitou em enfrentar a ditadura.
Muitos defendem que o País vive um bom momento. Seria esse o motivo da apatia cultural e política?
J.M. - Creio que não seja apenas isso. Acontece mesmo é que se perdeu essa dinâmica na relação produção-consumo. Tanto o Tropicalismo quanto a Bossa Nova - e até mesmo a Jovem Guarda, por mais ingênua que fosse - tinham uma mensagem de mudança de comportamento. A relação entre pais e filhos no Brasil mudou completamente depois da Jovem Guarda. No Tropicalismo, essas possibilidades abriram o leque de uma maneira nunca vista. Hoje, a situação parece pior, porque a ditadura é do próprio mercado, não é uma ditadura institucional. Até mesmo os grandes líderes dessa época, que ainda estão aí em atividade, não estão nem um pouco preocupados em adotar questões críticas em relação a porra nenhuma. Viraram popstars, estão todos ricos, fazendo shows que rendem milhões. O Ministério da Cultura liberou mais de 2 milhões para o Caetano fazer uma turnê pelo Brasil, e ele ainda recebe apoio privado! Porra, vão nos convencer de que o Caetano precisa de incentivo fiscal para cantar?
Estão cultivando essa mesma apatia?
J.M. - Caetano, Gil e Chico são talentos astronômicos. Qualquer coisa que eles façam será sempre bela, mas é triste lembrar que eles pertenciam à área da inteligência musical brasileira e, hoje, estão aí, um tanto indiferentes. Tom Jobim, por exemplo, não era da área da inteligência. Era da área da extrema sensibilidade musical. Fazia coisas como: "... É pau, é pedra, é o fim do caminho..." (Júlio bate as duas mãos cerradas na mesa de centro e repete o gesto de pergunta e resposta, sugerido pela melodia de Águas de Março). Repetia isso 20 vezes, uma coisa absurdamente simples, daí que vem o Leonard Feather, o maior crítico de jazz americano e decreta: "Essa é uma das 100 maiores melodias do século XX". Porra, o cara repete duas notas e é uma das 100 melodias do século?! Essa sensibilidade que o Jobim tinha é algo único. Isso é coisa que só Mozart ou Erik Satie faziam. Agora, essa turma não. Gil, Caetano e Chico eram parte da inteligência musical brasileira. Davam as cartas e ditavam rumos. Ditavam mesmo, pois de todos eles, Tom Zé foi o único que continuou inquieto. Acabou de me mandar um e-mail aqui, citando um negócio dele, que saiu na Newsweek, e não li ainda (uma resenha sobre a caixa Studies of Tom Zé: Explaining Things So I Can Confuse You, recém-lançada nos EUA).
Hoje em dia, é muito comum ouvir jovens compositores se dizerem influenciados pelos tropicalistas. Você enxerga algum vestígio dos valores dessa geração na música feita pelos novos artistas?
J.M. - A partir da década de 1940, existiram três gerações bem distintas, e ainda vivemos a terceira delas. Nos tempos da ditadura Vargas, quase toda a intelectualidade brasileira foi comprada por ele, que era muito esperto. Enchia de dinheiro a Rádio Nacional, porque sabia que, enquanto o circo estivesse funcionando, podia mandar a Olga Benário para o forno na Alemanha, podia mandar prender o Graciliano Ramos. Fazia o que bem queria, e ninguém iria perceber. Drummond tinha um tremendo emprego no gabinete do Gustavo Capanema (ministro da Educação e Cultura do governo Vargas). Vinícius de Moraes trabalhou para o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que era a censura da época. Certamente, ele não fazia nada ali, pois era um tremendo poeta e jamais teria cabeça de censor, mas tinha lá também o seu emprego. O Getúlio controlava a Rádio Nacional até por telefone. Sabia que aquilo ali tinha de estar fervilhando para ele ter liberdade de fazer todas as suas barbáries. Nesse sentido, ele foi muito esperto e soube como ninguém dominar parte da intelectualidade, que se vendeu a ele.
A segunda geração é justamente a sua?
J.M. - Exatamente. Nesse segundo momento, logo após o golpe de 1964, nossa geração não abriu concessões e enfrentou brilhantemente a ditadura. Alguns tiveram problemas seríssimos, perderam a vida, outros saíram ilesos, mas apesar da censura e da ditadura, justamente nesse período negro, de 1964 até 1972 - que começa com a popularização da Bossa Nova e os shows produzidos por Walter Silva no Teatro Paramount, reunindo milhares de universitários -, é que vivemos a melhor fase de nossa música popular do século XX. Depois, veio o Marcos Lázaro, um judeu argentino, que virou empresário musical no Brasil, e levou toda essa turma para a TV Record, que soube muito bem industrializá-los com os festivais. Surgem, então, a Jovem Guarda, o Tropicalismo e todos aqueles programas - Fino da Bossa, Jovem Guarda, Show em Si Monal, Divino, Maravilhoso -, até que de 1972 em diante a música brasileira passa a retroceder.
E esse retrocesso chega ao estado de degeneração que se acentuou a partir dos anos 1990? Seria esse o terceiro momento?
J.M. - Sim, o terceiro momento ainda é esse em que vivemos. Que veio depois da abertura política. Um período em que a música deixou de ter essa visão crítica da realidade. Essa terceira fase foi liderada por uma juventude completamente inodora. Cada um na sua. Trabalhei na USP e o que vi por lá? Não davam a mínima para os rumos que a nossa música estava tomando. Estavam todos preocupados mesmo era em garantir uma boa aposentadoria. O cara tem 20 anos e sua única meta é tomar o lugar de seu mestre e ganhar uma bela aposentadoria. Aliás, acho que eu é que fui burro, pois entrei na USP para dar algumas aulas de trilha sonora, e os alunos fizeram um abaixo-assinado para instituir um curso que foi pro brejo. Minha convivência com os universitários foi tão insuportável e aqueles acadêmicos eram tão chatos que eu saí correndo de lá! Hoje me arrependo, teria uma boa aposentadoria e não precisaria trabalhar aos 71 anos. Ontem mesmo, regi um concerto em São Bernardo do Campo. Estaria hoje numa boa, tomando uísque com vocês.
Esse processo coincide com a queda de qualidade das trilhas de telenovelas. Um veículo que sempre foi vitrine de novos artistas e praticamente morreu.
J.M. - A TV Globo, há décadas, não aposta em absolutamente nada relacionado à música no horário nobre. Os últimos programas que entraram nessa grade foram o Globo de Ouro e Chico e Caetano. Isso faz quase 30 anos! Um moleque de 25 anos, hoje, nem sabe que existe música brasileira em televisão. No caso das trilhas sonoras, a coisa é ainda mais grave. Tudo se resume às baladinhas. E pensar que a Globo já teve uma orquestra sinfônica! Quando fiz Grande Sertão Veredas - que julgo ter sido minha melhor trilha sonora para tevê -, tive uma sinfônica à disposição.
E você acompanha as trilhas feitas para as novelas de hoje?
J.M. - Muito raramente. Aliás, tenho uma conhecida que assiste às novelas, de manhã à noite, e conversando com ela sobre a novela Viver a Vida, pedi que me cantasse uma música da trilha. Ela pensou, pensou e se lembrou apenas de uma que tocou nos primeiros capítulos, mas não fazia parte da trilha. Insisti: "Mas me cante uma atual?". Aí, ela cantou aquela música da abertura e do fechamento, que não tinha nada a ver com nada! A novela se chamava Viver a Vida e pretendia contar histórias de superação, como a menina que era paraplégica. No final dos capítulos, o Manoel Carlos vinha com suas mensagens e aparecia lá uma moça da favela: "Eu fui estuprada com 11 anos, minha mãe foi assassinada e minha filha fugiu com um bandido, mas eu, com meu carrinho de pipoca, cheguei aqui, trabalhei 25 anos, e comprei a minha televisão em cores". Aí, cortava a cena e vinham as legendas e a musiquinha: "Sei lá, sei lá...". Uma tremenda gemedeira com os três piores cantores da música brasileira: Vinicius de Moraes, Miúcha e Chico Buarque. Uma escolha anestesiante e equivocada. O Manoel Carlos é mestre nisso.
Perante tudo isso, você ainda está otimista em relação ao futuro da música brasileira?
J.M. - Prefiro pensar que esse não é um caminho irreversível. O ser humano pode até não ter caráter, mas tem muito talento. O que o difere de outros animais é que ele compensa sua loucura com a capacidade de sonhar e criar. Uma hora, esse culto à imbecilidade vai cansar. Torço muito que, com o tempo, as pessoas se cansem desse repertório medíocre que está por aí. Criei a Universidade Livre de Música (ULM), no final do governo Quércia, e peguei um time de professores que unia os melhores instrumentistas e arranjadores de São Paulo. Depois de algum tempo, tinha em média 15 mil candidatos se inscrevendo por ano. Selecionávamos 2.500, e esses jovens, depois de um tempo, naturalmente, saíam de lá. Fica a pergunta: onde é que eles estão? O feitiço musical brasileiro não acaba nem vai embora, a questão é que, como discutimos lá atrás, não existe ninguém interessado em identificar e industrializar esse talento.
Aceitaria se fosse convidado pelo Estado para intervir nos rumos da nossa música?
J.M. - Não tenho a mínima pretensão política, mas se algum dia eu tivesse na mão alguma instituição pública, iria fazer um trabalho de Sherlock Holmes para descobrir onde é que está essa gente toda. No entanto, o que é que faz o Estado? Quase nada. Em São Paulo tem essa palhaçada que eles chamam de Virada Cultural. Um cara tocando violino na esquina, um coralzinho acolá cantando Casinha Pequenina. Você esfrega os olhos, se dá conta que o evento acabou, e no dia seguinte não sobrou nenhum resíduo de informação. Temos a OSESP, uma sinfônica de primeira grandeza, mas essa orquestra, que é do Estado de São Paulo, vai tocar no interior da Suíça, e o cara de Pindamonhangaba que nunca viu uma sinfônica na vida abre o jornal e descobre que pegam o imposto que ele paga - o ICMS do coitado de Pindamonhangaba! -, e bancam uma orquestra brasileira para tocar na Suíça. Ora, o cara lê o jornal e descobre que a orquestra está tocando Brahms no interior da Alemanha, que tem mil orquestras iguais! Logicamente, ele vai chegar à conclusão de que aquilo é algo muito distante para ele.
Maestro, você tem uma opinião polêmica sobre o rap, mas deixando as letras e o discurso social de lado, não existe ousadia alguma nos estímulos provocados por ele? Muita gente jovem só foi redescobrir a grandeza de Jorge Ben Jor e de Tim Maia pelas colagens das bases do Racionais MC's.
J.M. - Meu problema com o rap é outro. Ele veio dos Estados Unidos, e o negro americano, até meados dos anos 1960, precisava provar que também era gente. No Brasil, apesar de tudo que aconteceu, não existiu algo parecido. Basta dizer que a música erudita brasileira foi feita por mulatos. Todo o Barroco mineiro - e estamos falando de século XVIII - é feito por mulatos. O Padre José Maurício, o maior improvisador ao cravo do mundo, era negro. Carlos Gomes podia ser tudo, menos branco. Beiçudo, cabelo pixaim, ia lá para a Europa e comia todas as princesas. Nos Estados Unidos, o cara ficava trancado na fazenda, plantando algodão e impedido de fazer absolutamente nada. Trabalhava e choramingava, e daí nasceu o blues, que é uma maravilha. Aqui, não, o Aleijadinho fazia uma escultura pré-clássica francesa e em seguida encontrava a criola dele e seguia batucando. As raízes africanas trazidas para o Brasil não foram inibidas. A revolução rítmica brasileira - que foi a grande contribuição da mãe África à nossa cultura - continua evoluindo e gerou uma diversidade musical que nenhum país do mundo têm. Já o negro americano, somente no século XX, pôde ter um comportamento realmente livre e o que é que ele fez? Foi buscar dentro de si o que achava que era mais bonito, a música, e ele tinha tamanha beleza a oferecer que muitos defendem que o maior símbolo americano do século XX foi o jazz. O negro americano foi quem criou o valor cultural do século em seu país, e agora chega esse pessoal da periferia de Los Angeles, puxa um fumozinho, acha que não deu certo na vida porque a humanidade está contra ele, e vem com essa verborragia insuportável do rap.
E o jovem das periferias brasileiras, culturalmente oprimido, é facilmente seduzido...
J.M. - Sim. Daí, vem o cara da favela e decide imitar esse camarada. Justamente o brasileiro vai querer imitar o americano? O cara nasce em um País que tem a música popular mais rica e sensível do mundo, feita por negros geniais, como Pixinguinha, Nelson Cavaquinho e Cartola, e te pergunto: "Esses caras vieram de onde?". Ora, também vieram da favela! Vinham de regiões humildes, mas dentro de si tinham uma sofisticação francesa. O negro brasileiro é nobre. Dona Ivone Lara, por exemplo, você conversa com ela e logo se dá conta de que está diante de alguém que tem a nobreza de uma princesa.
Voltando à questão geracional, não é um pouco injusto generalizar e apontar a produção dos anos 1970 como culpada pela grande diluição que viria nas décadas seguintes?
J.M. - Lógico que há exceções, mas foi nos anos 1970 que tudo começou. As cabeças pensantes se acomodaram em seus reinados e chegaram as Joanas e Simones que fizeram um grande retrocesso. Voltamos à fase do bolerão. Fazendo um resumo do século, a música brasileira sempre vai de um extremo a outro. Depois dessa avalanche de invenção dos anos 1960, na década seguinte, caímos de novo no bolerismo. Nos anos 1980, explodiram outros focos de resistência liderados por Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e o Grupo Rumo. Chegam os 1990, e outra vez caímos de cabeça no melodismo, com as duplas caipiras. Você pega toda essa música caipira e ela parece um bolerão de puteiro de cais de porto, de quinta categoria. Depois, vem o pagode romântico e aqueles falsos pagodeiros que todos eles, juntos, não davam a pausa de uma música do Cartola ou do Nelson Cavaquinho. Em outros países esse melodismo impera, mas a música brasileira sempre foi muito rica em ideias e tratou de esmiuçar a realidade. Na Segunda Guerra, assim que Hitler toma o poder, o Braguinha vai lá e faz o Adolfito mata-mouros. Dá uma puta gozada no Hitler! Torço para que venha agora uma nova música brasileira, de baixo para cima, de esforços individuais.
É preciso então acontecer algo parecido com a revolução solitária empreendida por João Gilberto no final dos anos 1950?
J.M. - Exatamente. No final dos anos 1950, a música brasileira também vivia esse bolerismo insuportável. A fase do ninguém me ama, ninguém me quer. Todo mundo choramingando suas pitangas no rádio. Um vale de lágrimas. Daí que chegam esses meninos de violão em punho, cantando baixinho, e não é que foi possível o povo ouvir o grito silencioso do João e do Tom? Então, eu acho que até mesmo nesse meio do rap ou do rock pode surgir alguém com muito talento. Talento é talento, e ponto final. Não escolhe lugar para surgir, e onde existe o talento é sempre possível ter uma surpresa.
E você tem se dedicado a buscar esse novo. O que ouve, hoje em dia, de música popular e erudita?
J.M. - Não ouço música. Graças a Deus moro aqui (uma aprazível casa no bairro do Morumbi, em São Paulo), e é esse silêncio absoluto o tempo todo. Ouvi tanta coisa na vida que é difícil algo me despertar interesse. A última coisa que me excitou de verdade, foi justamente um show do Tom Zé. É bom saber que dessa turma ainda existe alguém tendo ideias quentes na cabeça, mas se trata de um artista muito culto e constituído. Você já espera isso dele. A cultura ocidental comandada pela Europa criou um vício que vem desse imperialismo cultural - aliás, muito merecido, pois eles fizeram coisas deslumbrantes - que prega que o que é bom tem de vir de cima para baixo. O tempo todo o Brasil provou o contrário. Com linguagens muito rarefeitas e econômicas, o brasileiro atinge um sentido cultural profundo. Pegue o exemplo do Adoniran Barbosa. Ele é melhor do que muitos filósofos! Conseguia o paradoxo de, às vezes, demonstrar uma tristeza de profunda alegria, que se equiparava à melhor filosofia. Observava as coisas que afligiam os desprovidos, os mal assistidos pela vida, e conseguia fazer desse universo, muitas vezes trágico, algo de uma poesia incomparável. Extraía graça de tudo, ironizava a própria miséria. O valor cultural não precisa se afirmar na base do berro, da porrada e da repetição, tampouco da intelectualidade.
E, de alguma forma, você acha que essa multiplicidade única de nossa música continua viva?
J.M. - Ela até padece, mas acho que nunca morrerá. Escrevi um chorinho, com um ritmo 6 x 8 sincopado para a filarmônica de Berlim, e os caras simplesmente não conseguiram tocar. As acentuações dançam dentro do compasso de tal maneira, que se o cara não tem um pouco dessa experiência de síncopa que o brasileiro tem de sobra, não consegue tocar mesmo. Dei o mesmo tema para o pessoal do municipal, e eles literalmente comeram na mesma hora, na primeira. Esse, o maior legado da influência africana em nossa música, a síncopa. Ela está no samba, no choro, no xaxado, no baião, e é essa a nossa supremacia em relação à música americana, que vem destruindo suas raízes africanas e, hoje, é majoritariamente baseada nessa coisa do tempo forte e das variações simétricas. Lembro-me de uma ocasião em que regi a sinfônica de Boston. O João Gilberto veio me visitar. Os músicos pararam imediatamente para vê-lo. Era um mito para eles. Mal acreditavam que estavam diante dele. Quer cara mais sofisticado que o João Gilberto?! Aquela sutileza, aquela antimúsica. Só o Webern era parecido com ele, e é esse despojamento e essa hipersensibilidade que, infelizmente, vemos desaparecer da música brasileira, sem que nada seja feito.
Entrevista concedida à Revista Brasileiros, em fevereiro de 2011.
Júlio Medaglia (São Paulo, 26 de Setembro de 1938) é maestro e arranjador. Ex-aluno de Pierre Boulez, Stockhausen e John Barbirolli, Medaglia foi fundador da Amazonas Filarmônica e dirigiu a Orquestra da Rádio de Baden-Baden e a Rádio Roquete Pinto. Publicou os livros Música Impopular, O Som como Parte da Narrativa. Análise Musical. A Orquestra e Música, maestro!: do Canto Gregoriano ao Sintetizador.
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