domingo, 9 de dezembro de 2012

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade [Milton Santos]


Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há também referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mundo físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente recebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, que se aproveita do alargamento de todos os contextos (M. Santos, "A natureza do espaço", 1996) para consagrar um discurso único. Seus fundamentos são a informação e o seu império, que encontram alicerce na produção de imagens e do imaginário, e se põem ao serviço do império do dinheiro, fundado este na economização e na monetarização da vida social e da vida pessoal.

Com essa grande mudança na história, tornamo-nos capazes, seja onde for, de ter conhecimento do que é o acontecer do outro. Nunca houve antes essa possibilidade oferecida pela técnica, a nossa geração ter em mãos o conhecimento instantâneo do acontecer do outro. Essa é a grande novidade, o que estamos chamando de unicidade do tempo ou convergência dos momentos. A aceleração da história, que o fim do século XX testemunha, vem em grande parte disto. Mas a informação instantânea e globalizada por enquanto não é generalizada e veraz porque atualmente intermediada pelas grandes empresas de informação.

E quem são os atores do tempo real? Somos todos nós? Esta pergunta é um imperativo para que possamos melhor compreender nossa época. A ideologia de um mundo só e da aldeia global considera o tempo real como um patrimônio coletivo da humanidade, mas ainda estamos longe desse ideal, todavia alcançável.

A história é comandada pelos grandes atores desse tempo real, que são, ao mesmo tempo, os donos da velocidade e os autores do discurso ideológico. Os homens não são igualmente atores desse tempo real. Fisicamente, isto é, potencialmente, ele existe para todos. Mas efetivamente, isto é, socialmente, ele é excludente e assegura exclusividade, ou, pelo menos, privilégios de uso.



Apesar de ter se graduado em Direito, Milton Santos destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geografia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil ocorrida na década de 1970. Escreveu os livros: O meio técnico-científico e a redefinição da urbanização brasileira, O espaço do cidadão, Técnica, espaço, tempo, Por uma outra globalização, entre outros.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Interessere [Décio Pignatari]



Na vida interessa o que não é vida
Na morte interessa o que não é morte
Na arte interessa o que não é arte
Na ciência interessa o que não é ciência
Na prosa interessa o que não é prosa
Na poesia interessa o que não é poesia
Na pedra interessa o que não é pedra
No corpo interessa o que não é corpo
Na alma interessa o que não é alma
Na história interessa o que não é história
Na natureza interessa o que não é natureza
No sexo interessa o que não é sexo
(: o amor que, de resto, pode ser abominável)
No homem interessa o que não é homem
Na mulher interessa o que não é mulher
No animal interessa o que não é animal
Na arquitetura interessa o que não é arquitetura
Na flor interessa o que não é flor
Em Joyce interessa o que não é Joyce
No concretismo interessa o que não é concretismo
No paradigma interessa o que não é paradigma
No sintagma interessa o que não é sintagma
Em tudo interessa o que não é tudo
No signo interessa o que não é signo
Em nada interessa o que não é nada.


Além de poesia, Pignatari (1927-2012) escreveu romance, peça de teatro e foi tradutor, professor e estudioso de semiótica. Sua obra poética está reunida em “Poesia pois é poesia” (1977), e lançou, em 2009, o livro "Bili com limão verde na mão". Entre as obras de maior relevância do poeta estão "Informação, linguagem, comunicação" (1968), "Contracomunicação" (1972), "Semiótica e literatura" (1974) e "O rosto da memória" (1988). Como tradutor, Pignatari é responsável por obras de nomes como Dante Alighieri, Goethe, Shakespeare e Marshall McLuhan.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O desejo do contemporâneo [Antonio Cicero]


O FILÓSOFO Gilles Deleuze diz que "uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro assim como se escuta um disco, assim como se vê um filme ou um programa de televisão, assim como se acolhe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija para ele um respeito, uma atenção especial, corresponde a outra época e condena definitivamente o livro".

Por mim, cada qual que leia o que quiser da maneira que lhe aprouver. Contudo, quando leio, por exemplo, as bobagens ou trivialidades que são cotidianamente escritas sobre Nietzsche por alguns dos seus fãs, tenho a impressão de que hoje praticamente todo o mundo já adotou a maneira de ler recomendada pelo autor de "Diferença e Repetição". E então tendo a achar que Heidegger é que estava certo, quando recomendava aos seus alunos que adiassem a leitura de Nietzsche para depois que estudassem Aristóteles durante uns dez ou 15 anos.

Deleuze jamais concordaria com isso, pois considerava repressiva a história da filosofia. Segundo ele, as pessoas não se sentem no direito de pensar antes de terem lido Platão, Descartes, Kant e Heidegger. Talvez. Mas eu diria antes que quem não quer pensar sempre acha uma desculpa para tal. Se, na França, é a história da filosofia, no Brasil é a filosofia contemporânea que tem esse papel. Tradicionalmente o brasileiro, tendendo a considerar-se atrasado em relação ao que se discute no Primeiro Mundo, não se dá o direito a pensar antes de estar a par do "dernier cri" europeu ou norte-americano. Ora, mal se conhece o "dernier cri" e ele já deixou de o ser, de modo que, correndo-se atrás do próximo, deixa-se para pensar por conta própria mais tarde.

Além disso, quem só deseja estar "up to date" acaba por jamais ler os clássicos. A leitura dos contemporâneos toma-lhe todo o tempo. Tal pessoa espera que os autores da moda lhe indiquem quais dos autores do passado ainda devem ser respeitados (por exemplo, Spinoza e Nietzsche) e quais devem ser desprezados (por exemplo, Descartes e Hegel). E, no mais das vezes, como aquilo que os contemporâneos escrevem sobre os autores que recomendam é considerado justamente o suprassumo destes, torna-se supérflua a leitura dos originais.

Pensemos no significado desse desejo de ser contemporâneo. "Contemporâneo" quer dizer "do mesmo tempo" ou "do mesmo tempo que". Quando dizemos, por exemplo, "Mário e Oswald foram contemporâneos", queremos dizer: "Mário e Oswald foram do mesmo tempo"; e quando dizemos "Leonardo foi contemporâneo de Michelangelo", queremos dizer: "Leonardo foi do mesmo tempo que Michelangelo".

Quando, por outro lado, digo que uma coisa ou pessoa é contemporânea, sem explicitar de quê ou de quem, fica sempre implícito que essa coisa ou pessoa é contemporânea de mim, que estou a dizê-lo. Se digo, por exemplo, "Giorgio Agamben é um filósofo contemporâneo", quero dizer que ele é meu contemporâneo: o que poderia ser dito pelas palavras "Giorgio Agamben é um filósofo do mesmo tempo que eu". Ou seja, o que quer que seja contemporâneo, sem mais, é contemporâneo de mim (seja quem eu for). É claro que, como a contemporaneidade consiste em uma relação comutativa, não posso deixar de, reflexivamente, me reconhecer contemporâneo das coisas ou pessoas que me são contemporâneas.

Isso significa que não tem sentido que eu – seja quem eu for – me diga contemporâneo, sem mais. "Eu sou contemporâneo" significa apenas: "Eu sou do mesmo tempo que eu". Assim também, não tem sentido desejar ser contemporâneo, sem mais, pois "desejo ser contemporâneo" significa apenas: "Desejo ser do mesmo tempo que eu". Finalmente, não tem sentido desejar ser contemporâneo de alguma coisa ou pessoa contemporânea, uma vez que eu já sou, evidentemente, contemporâneo de quem me é contemporâneo. 

Assim, o desejo do contemporâneo não passa de sintoma de um agudo provincianismo temporal. Quando se manifesta no campo da filosofia, talvez o melhor antídoto para ele seja exatamente a leitura cuidadosa dos clássicos.

E, de volta a Deleuze, devo dizer que, no lugar de tratar um livro como normalmente se escuta uma canção, acho mais proveitoso, de vez em quando, escutar algumas canções com o respeito e a atenção especial que o bom leitor jamais deixará de dedicar aos bons livros.


Poeta e ensaísta, Antonio Cicero é autor, entre outras coisas, dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim e Finalidades sem fim, e dos livros de poemas Guardar, A cidade e os livros e, o mais recente, Porventura.

domingo, 11 de novembro de 2012

O Brasil não é regido pela Bíblia [Alexandre Vidal]



A Constituição determina que o Brasil é um Estado laico e assegura liberdade religiosa para todos os cidadãos. As autoridades devem dar garantias ao culto de qualquer religião, sem, no entanto, agir em nome de nenhuma. Em uma democracia, esses princípios são importantes porque preservam o pluralismo da sociedade e protegem o pleno exercício dos direitos individuais.

Trata-se de uma conquista da civilização ocidental que se encontra ameaçada no Brasil. Hoje, fé e política parecem manter uma relação espúria, na qual princípios religiosos contaminam de forma indevida o processo legislativo nacional. Absurdamente, começa-se a achar natural que projetos de lei submetidos à Câmara dos Deputados, ainda que consonantes com os princípios da Constituição e dirigidos ao todo da população — religiosa ou não —, tenham de passar pelo crivo doutrinário das igrejas e fiquem reféns de sua sanção.

Retira-se, assim, de parcela considerável do povo brasileiro, a possibilidade de regular seus direitos constitucionais fora de preceitos bíblicos que não abraçou. Ao mesmo tempo, as lideranças religiosas assumem ares de superioridade moral e alavancam seus interesses políticos baseados em uma ideologia teocrática de exclusão, que desqualifica quem não partilha de sua fé.

Ninguém é melhor ou mais ético porque tem religião. Cada um tem o direito de escolher os princípios morais que nortearão sua vida de acordo com a sua consciência. Essa prerrogativa fundamenta os direitos individuais. Foi conquistada a duras penas, em reação, justamente, ao monopólio ideológico e religioso que, diversas vezes na história, impôs-se com resultados terríveis para a humanidade.
Ao longo dos séculos, muitas atrocidades foram cometidas em nome da Bíblia e de outros textos religiosos. Não fosse a garantia da pluralidade democrática, o mesmo deputado que vocifera contra cultos de matriz africana ou direitos reprodutivos das mulheres, poderia ter sido queimado na fogueira da Inquisição católica ou morto por apedrejamento como infiel.

O Brasil é um país diverso. E quer continuar a sê-lo. Nele, não deve haver espaço para a intolerância O Congresso não legisla apenas para quem tem religião. Tem de proteger a todos. Tentar impor uma ideologia religiosa por meio da ação legislativa desfigura nossa democracia. Os religiosos têm o direito de observar seus princípios, mas não podem impingi-los ao resto da população. O Brasil não é regido pela Bíblia. Que os religiosos cultuem o que quiserem, mas que respeitem quem não pensa e não quer viver como eles.

É importante que as autoridades do governo tentem colocar em perspectiva a ação política de grupos religiosos no Brasil. O Estado brasileiro é laico e deve comportar-se como tal. Em mais de uma instância, minorias sociais têm visto seus direitos individuais virarem moeda de troca. Tolerar a intolerância pode render votos, mas não é uma forma justa de governar.


Alexandre Vidal é advogado.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

A constituição da república tem um buraco [Graciliano Ramos]


A Constituição da República tem um buraco. É possível que tenha muitos, mas sou pouco exigente e satisfaço-me com referir-me a um só. Possuímos, segundo dizem os entendidos, três poderes – o executivo, que é o dono da casa, o legislativo e o judiciário, domésticos, moços de recados, gente assalariada para o patrão fazer figura e deitar empáfia diante das visitas. Resta ainda um quarto poder, coisa vaga, imponderável mas que é tacitamente considerado o sumário dos outros três.

É aí que o carro topa. Há no Brasil um funcionário de atribuições indeterminadas, mas ilimitadas.

Aí está o rombo na constituição, rombo a ser preenchido quando ela for revista, metendo-se nele a figura interessante do chefe político, que é a única força de verdade. O resto é lorota.

Em escala descendente, a começar pelo Catete, onde pontifica o chefe açu, e a terminar no último lugarejo do sertão, com um caudilho, mirim, isto é um país a regurgitar de mandões de todos os matizes e feitios.

Está aqui um deputado que é um poço de manha, papagueador quando parola com o eleitorado, mudo na Câmara, gênero peru; ali está um presidente de estado que outra coisa não tem feito senão apregoar pelas trombetas oficiais as maravilhas que ninguém vê, mas que ele teve o louvável intuito de realizar; temos acolá um advogado ventoinha, equilibrista emérito, camaleão legítimo; vem depois o comerciante voraz, enriquecido com os favores clandestinos, negociatas escusas e contrabandos; mais distante, avulta a majestade rotunda do industrial insatisfeito, empanturrado pelas propinas que a guerra lhe meteu no bucho.

Todos eles são mais ou menos chefes. Não se sabe bem do que, mas certo é que o são. Graúdos, risonhos, nutridos, polidos, escovados, envernizados, lá estão inchando, inchando. São os grossos batráquios da lagoa republicana. Muitos, menos volumosos, coaxam pelos cantos, chefinhos incolores, numerosos, em chusma, minúsculas pererecas em poças d’água.

São os donos de todos os municípios destes remotos rincões que o estrangeiro ignora, que as cidades do litoral conhecem vagamente, através dos despachos da Agência Americana.

Mandatários do governo, forjadores de eleições, mais ou menos coronéis, caciques em miniatura, têm frequentemente, para infundir respeito, uma espada da Guarda Nacional, um boné sebento, um lenço de tabaco e um par de socos.

Possuem um factótum, pau para toda obra, secretário particular e muitas coisas mais, criatura que se especializa no mister de enviar ao presidente ou governador do estado chavões telegráficos de congratulação pelo aniversário de gloriosas potocas que enchem nossa história.

São, a um tempo, intendentes ou prefeitos, juízes, promotores, advogados e jurados, conselheiros municipais, comissários de polícia e inspetores de quarteirão.

Realizam a pluralidade na unidade!

E ainda há quem duvide do mistério da Santíssima Trindade.

Parece-me claro que uma pergunta aqui se impõe: para que tanta gente de palha a ocupar cargos em penca, a roer sinecuras polpudas nesta confederação cinematográfica, em que o poder é a coisa mais centralizada deste mundo, se, desde o tempo dos capitães-mores, um homem só pode administrar, legislar e julgar a contento das populações sertanejas?

Ponha-se, pois, o chefe político no galarim e mande-se às favas o resto.

Metam-no, honestamente, em letra de fôrma.

Entre ele, triunfante, com armas e bagagens, em nosso magno estatuto.

Peguemos o chefe político, agitemo-lo no ar e berremos o estribilho com que a imprensa, há tempos, nos anda a amolar – A constituição da república precisa de uma revisão.


Publicado no "Jornal de Alagoas", em março de 1915.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Meu inferno mais íntimo [Luiz Felipe Pondé]



Um jovem rabino, angustiado com o destino da sua alma, conversava com seu mestre, mais velho e mais sábio, em algum lugar do Leste Europeu entre os séculos 18 e 19.

Pergunta o mais jovem: "O senhor não teme que quando morrer será indagado por Deus do porquê de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias? Eu sempre temo esse dia".

O mestre teria respondido algo assim: "Quando eu morrer e estiver na presença de Deus, não temo que Ele me pergunte pela razão de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias, temo que Ele me pergunte pela razão de eu não ter conseguido ser eu mesmo".

Trata-se de um dos milhares de contos hassídicos, contos esses que compõem a sabedoria do hassidismo, cultura mística judaica que nasce, "oficialmente", com o Rabi Baal Shem Tov, que teria nascido por volta de 1700 na Polônia.

A palavra "hassidismo" é muito próxima do conceito de "Hesed", piedade ou misericórdia, que descreve um dos traços do Altíssimo, Adonai ("Senhor", termo usado para se referir a Deus no judaísmo), o Deus israelita (que, aliás, é o mesmo que "encarnou" em Jesus, para os cristãos).

Hassídicos eram conhecidos como "bêbados de Deus", enlouquecidos pela piedade divina (e pela vodca que bebiam em grandes quantidades para brindar a vida...) que escorre dos céus para aqueles que a veem.

São muitas as angústias de quem acredita haver um encontro com Deus após a morte. Mas ninguém precisa acreditar em Deus ou num encontro como esse para entender a força de uma narrativa como esta: o primeiro encontro, em nossa vida, que pode vir a ser terrível, é consigo mesmo. Claro que se Deus existe, isso assume dimensões abissais.

Para além do fato óbvio de que o conto fala do medo de não estarmos à altura da vontade de Deus, ele também fala do medo de não sermos seres morais e justos, como Moisés e Elias, exemplos de dois grandes "heróis" da Bíblia hebraica. Ser como Moisés e Elias significa termos um parâmetro moral exterior a nós mesmos que serviria como "régua".

A resposta do sábio ancião ao jovem muda o eixo da indagação: Deus não está preocupado se você consegue seguir parâmetros morais exteriores, Deus está preocupado se você consegue ser você mesmo.

Não se trata de pensar em bobagens do tipo "Deus quer que você seja feliz sendo você mesmo" como pensaria o "modo brega autoestima de ser", essa praga contemporânea. Trata-se de dizer que ser você mesmo é muito mais difícil do que seguir padrões exteriores porque nosso "eu" ou nossa "alma" é nosso maior desafio.

Enfrentar-se a si mesmo, reconhecer suas mazelas, suas inseguranças e ainda assim assumir-se é atravessar um inferno de silêncio e solidão. Ninguém pode fazer isso por você, é mais fácil copiar modelos heroicos, por isso o sábio diz que Deus não quer cópias de Moisés e Elias, mas pessoas que O enfrentem cara a cara sendo quem são.

Podemos imaginar Deus perguntando a você se teve coragem de ser você mesmo nos piores momentos em que ser você mesmo seria aterrorizante. Aí está o cerne da "moral da história" neste conto.

Noutro conto, um justo que morre, chegando ao céu, ouve ruídos horrorosos vindo de uma sala fechada. Perguntando a Deus de onde vem aquele som ensurdecedor, Deus diz a ele que vá em frente e abra a porta do lugar de onde vem a gritaria. Pergunta o justo a Deus que lugar seria aquele. Deus responde: "O inferno". Ao abrir a porta, o justo ouve o que aqueles infelizes gritavam: "Eu, eu, eu...".

Ao contrário do que dizia o velho Sartre, o inferno não são os outros, mas sim nós mesmos. Numa época como a nossa, obcecada por essa bobagem chamada autoestima, ocupada em fazer todo mundo se achar lindo e maravilhoso, a tendência do inferno é ficar superlotado, cheio de mentirosos praticantes do "marketing do eu". 
Casas, escritórios, academias de ginásticas, igrejas, salas de aula, todos tomados pelo ruído ensurdecedor do inferno que habita cada um de nós. O escritor católico George Bernanos (século 20) dizia que o maior obstáculo à esperança é nossa própria alma. Quem ainda não sabe disso, não sabe de nada.

terça-feira, 10 de julho de 2012

O mito da raça [Demétrio Magnoli]


Gene - Elemento do cromossomo que condiciona a transmissão e a manifestação dos caracteres hereditários.

Mito - Narrativa popular ou literária, que coloca em cena seres sobre-humanos e ações imaginárias, para as quais se faz a transposição de acontecimentos históricos, reais ou fantasiosos (desejados), ou nas quais se projetam determinados complexos individuais ou determinadas estruturas subjacentes das relações familiares; Coisa fabulosa ou rara: a Fênix dos antigos é um mito; Lenda, fantasia; Coisa que não existe na realidade.

Raça - Sucessão de ascendentes e descendentes de uma família, um povo; Grupo de indivíduos cujos caracteres biológicos são constantes e passam de uma a outra geração; Subdivisão de uma espécie: raças humanas; Categoria de pessoas da mesma profissão, de inclinações comuns: os usurários constituem má raça; Animal de raça, animal de boa origem.


Eugenia - Ciência que se ocupa do estudo dos meios para melhoria da espécie humana; eugenismo.

Cultura - Ação ou maneira de cultivar a terra ou as plantas; Terreno cultivado: a extensão das culturas; Categoria de vegetais cultivados: culturas forrageiras; Arte de utilizar certas produções naturais: a cultura do algodão. Criação de certos animais: a cultura de abelhas; Conjunto dos conhecimentos adquiridos; a instrução, o saber: uma sólida cultura; Conjunto das estruturas sociais, religiosas etc., das manifestações intelectuais, artísticas etc., que caracteriza uma sociedade.

Etnocentrismo - Tendência de um indivíduo para valorizar seu grupo, sua região, sua nacionalidade.


Mestiçagem - Cruzamento de raças ou espécies diferentes.

Neocolonialismo - Medidas econômicas e políticas com que uma potência mantém ou estende indiretamente sua influência sobre outras áreas ou povos.

Ancestralidade - Qualidade de ancestral; ascendência; antiguidade.


terça-feira, 26 de junho de 2012

O governo Dilma parece velho [Marco Antonio Villa]


O governo Dilma Rousseff completa 18 meses. Acumulou fracassos e mais fracassos. O papel de gerente eficiente foi um blefe. Maior, só o de faxineira, imagem usada para combater o que chamou de malfeitos. Na história da República, não houve governo que, em um ano e meio, tenha sido obrigado a demitir tantos ministros por graves acusações de corrupção.

Como era esperado, a presidente não consegue ser a dirigente política do seu próprio governo. Quando tenta, acaba sempre se dando mal. É dependente visceralmente do seu criador. Está satisfeita com este papel. E resignada. Sabe dos seus limites. O presidente oculto vai apontando o rumo e ela segue obediente. Quando não sabe o que fazer, corre para São Bernardo do Campo. A antiga Detroit brasileira virou a Meca do petismo. Nunca tivemos um ex-presidente que tenha de forma tão cristalina interferido no governo do seu sucessor. Lembra o que no México foi chamado de Maximato (1928-1934), quando Plutarco Elias Calles foi o homem forte durante anos, sem que tenha exercido diretamente a presidência. Lá acabou numa ruptura. Em 1935 Lázaro Cárdenas se afastou do "Chefe Máximo" da Revolução. Aqui, nada indica que isso possa ocorrer. Pelo contrário, pode ser que em 2014 o criador queira retomar diretamente as rédeas do poder e mande para casa a criatura.

O PAC - pura invenção de marketing para dar aparência de planejamento estatal - tem como principal marca o atraso no cronograma das obras, além de graves denúncias de irregularidades. O maior feito do "programa" foi ter alçado uma desconhecida construtora para figurar entre as maiores empreiteiras brasileiras. De resto, o PAC é o símbolo da incompetência gerencial: os conhecidos gargalos na infraestrutura continuam intocados, as obras da Copa do Mundo estão atrasadas, o programa "Minha Casa, Minha Vida" não conseguiu sequer atingir 1/3 das metas.

O Nordeste é o exemplo mais cristalino de como age o governo Dilma. A região passa pela seca mais severa dos últimos 30 anos. A falta de chuva já era sabida. Mas as autoridades federais não estavam preocupadas com isso. Pelo contrário. O que interessava era resolver a partilha da máquina estatal na região entre os partidos da base. Duas agências foram entregues salomonicamente: uma para o PMDB (o DNOCS) e outra para o PT (o Banco do Nordeste). E a imprensa noticiou graves desvios nos dois órgãos, que perfazem quase 300 milhões de reais. A "punição" foi a demissão dos gestores. Enquanto isso, desejando mostrar alguma preocupação com os sertanejos, o governo instituiu a bolsa-seca, 80 reais para cada família cadastrada durante 5 meses, perfazendo 400 reais (o benefício será extinto em novembro, pois, de acordo com a presidente, vai chover na região e tudo, magicamente, vai voltar ao normal). Isto mesmo, leitor. Esta é a equidade petista: para os mangões, tudo; para os sertanejos, uma esmola.

Greves pipocam pelo serviço público. As promessas de novos planos de carreiras nunca foram cumpridas. A educação é o setor mais caótico. Não é para menos. Tem à frente o ministro Aloizio Mercadante. Quando passou pelo Ministério da Ciência e Tecnologia nada fez. Só discursou e fez promessas. E as realizações? Nenhuma. Mercadante lembra Venceslau Braz. Durante o quadriênio Hermes da Fonseca, Venceslau foi um vice-presidente sempre ausente da Capital Federal. Vivia pescando em Itajubá. Quando foi alçado à presidência da República, o poeta Emílio de Menezes comentou sarcasticamente: "É o único caso que conheço de promoção por abandono de emprego." Mercadante é um versão século XXI de Venceslau. O sistema federal de ensino superior está parado e vive uma grave crise. O que ele faz? Finge que nada está acontecendo. Quando resolve se manifestar, numa recaída castrense, diz que só negocia quando os grevistas voltarem ao trabalho.

A crise econômica mundial também não mereceu a atenção devida. Como o governo só administra o varejo e não tem um projeto para o país, enfrenta as turbulências com medidas paliativas. Acha que mexendo numa alíquota resolve o problema de um setor. Sempre a política adotada é aquela mais simples. Tudo é feito de improviso. É mais que evidente que o modelo construído ao longo das últimas duas décadas está fazendo água (e não é de hoje). É necessário mudar. Mas o governo não tem a mínima ideia de como fazer isso. Prefere correr desesperadamente atrás do que considera uma taxa de crescimento aceitável eleitoralmente. É a síndrome de 2014. O que importa não é o futuro do país, mas a permanência no poder.

Na política externa, se é verdade que Patriota não tem os arroubos juvenis de Amorim, o que é muito positivo, os dez anos de consulado petista transformaram a Casa de Rio Branco em uma espécie de UNE da terceira idade. A política externa está em descompasso com as necessidades de um país que pretende ter papel relevante na cena internacional. O Itamaraty transformou-se em um ministério marcado por derrotas. A última foi na Rio+20, quando, até por ser a sede do evento, deveria exercer não só um papel de protagonista, como também de articulador. A nossa diplomacia perdeu a capacidade de construir consensos. Assimilou o "estilo bolivariano", da retórica panfletária e vazia, e, algumas vezes, se tornou até caudatária dos caudilhos, como agora na crise paraguaia.

O governo Dilma parece velho, sem iniciativa. Parodiando o poeta: todo dia ele faz tudo sempre igual. E saber que nem completou metade do mandato. Pobre Brasil.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Entrevista: Deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ)


O senhor faz parte do grupo de parlamentares que acompanhará os trabalhos da Comissão da Verdade pelo Congresso. Como a Casa pode contribuir com a comissão?

A Comissão Especial de Acompanhamento da Comissão da Verdade foi instalada como um instrumento de pressão do Legislativo sobre o Executivo, porque o governo Dilma estava demorando demais para indicar os membros da Comissão da Verdade. Nós já fizemos audiências e oitivas, ouvindo gente dos dois lados. A última que fizemos foi no Espírito Santo. Nós ouvimos dois agentes da repressão, o Marivaldo Chaves e o Cláudio Guerra, que recentemente publicou um livro chamado Memórias de uma guerra suja, onde descreve como incinerou corpos de presos políticos mortos pela ditadura.

O depoimento do Cláudio Guerra esclarece fatos importantes?

O Cláudio é um cara que tem um passado ligado ao crime organizado. A gente quer acatar esse depoimento com um pé atrás. Hoje ele é pastor evangélico da Assembleia de Deus. É difícil saber se a decisão dele de falar é fruto de um profundo arrependimento ou se ele é um cara que quer criar uma cortina de fumaça trazendo à tona crimes que já foram prescritos.

O senhor defende a revisão da Lei da Anistia?

Ela deveria ser revista, as pessoas têm que pagar. Com a Lei da Anistia, a Justiça não se realiza. Temos que criar condições para que a tortura não aconteça mais. Ela existe ainda hoje nas prisões. A presidente disse em uma entrevista que se sente impotente para erradicar essa herança maldita que é a tortura nas prisões. Eu achei lamentável, a gente nunca pode se sentir impotente para enfrentar a tortura.

Esse debate não colaboraria para alimentar tensões entre militares e ex-presos políticos?

Sim, mas a gente não pode ter medo de brigas, não. A política é o espaço do enfrentamento. A gente já fez concessões demais para essa gente. Mesmo que não seja possível rever a lei, o debate tem que ser feito.

Como o senhor entrou para a política?

Eu comecei com o movimento pastoral da Igreja Católica, mas aos 16 anos eu me afastei da igreja por causa da minha sexualidade.

Como isso aconteceu?

Eu me assumi gay e a igreja não contempla essa discussão. Quando eu cheguei para falar com o bispo da minha cidade, ele me disse que eu estava perdendo a fé. Que era a hora de eu sair. E eu saí. Aí, quando me mudei para Salvador, me engajei no movimento gay. Houve uma breve interrupção com a minha participação no programa...

Sua participação no Big Brother Brasil teve influência no caminho na política?

De certa forma. Eu fiquei muito exposto, a minha vida saiu do trilho que eu havia desenhado. Quando saí do programa, comecei um processo lento de retorno à minha vida, me afastei deliberadamente desse universo de celebridades. Passei um tempo trabalhando como repórter da TV Globo, pedi demissão e voltei à academia para dar aula. Aí depois disso, a Heloísa Helena me fez o convite para me filiar ao PSol.

Como foi esse primeiro contato?

Uma amiga nossa nos apresentou e ela falou que eu tinha de aproveitar o capital de popularidade que eu tinha, o meu engajamento, e buscar um partido. Me filiei ao PSol e a Heloísa disse que eu deveria sair candidato. Relutei durante um tempo, estava preocupado por achar que não tinha me distanciado o suficiente do programa. Mas deu tudo certo.

O Congresso era o que o senhor esperava?

O Legislativo é o mais democrático dos Poderes, mas ele acontece no tempo da democracia. A gente não tem nada para colocar no lugar da democracia, mas reconhece todos os problemas dela. Eu trouxe a novidade de ser um homossexual assumido atuando nessa questão dos direitos humanos no Congresso, dilatando a pauta para conter as reivindicações da comunidade homossexual. Isso é uma experiência nova.

Antes do senhor teve o Clodovil...

O Clodovil quase não fez essa atuação de defesa dos direitos da comunidade homossexual. Ele não trazia as bandeiras do movimento para cá. Ele não foi eleito pela comunidade. Quer dizer, eu também não fui. A comunidade LGBT ainda não tem a capacidade de eleger um representante, não despertou politicamente para isso. Se já tivesse despertado, já teria eleito muita gente.

O Senado está discutindo agora o PLC 122, que torna crime a homofobia. O senhor acredita que o Congresso possa chegar a um consenso sobre o tema?

É difícil. O projeto implica em limitação de liberdade e o espírito humano tende a rejeitar limitações. Fica muito fácil para os evangélicos demonizarem o projeto, mas o que o texto faz é exigir deles responsabilidade com a liberdade de expressão. Por isso é tão controverso. Acho que as chances de ser aprovado são menores do que a PEC do casamento civil entre homossexuais.

Por quê?

A proposta não se mete nas religiões. O casamento é civil, é aquele que pode ser dissolvido pelo divórcio. Toda a discussão de que o casamento civil se confunde com o casamento religioso foi derrubada com a aprovação da Lei do Divórcio. Aqui, no Brasil, as pessoas tentam minimizar essa pauta como se fosse uma coisa de veado. Não, ela é da sociedade, é uma pauta crucial da democracia.

Essa discussão será uma nova briga com a bancada evangélica?

Eu não sou inimigo dos evangélicos, mas há parlamentares fundamentalistas aqui que se arvoram a falar em nome de toda a comunidade evangélica. O movimento LGBT é inimigo dos fundamentalistas evangélicos, certamente. Mas nem todo evangélico é fundamentalista.

A Frente Parlamentar Evangélica seria, então, composta de fundamentalistas, na opinião do senhor?

Sim, com certeza. Embora tenha exceções a essa regra. A bancada trabalha para perseguir não só os homossexuais, mas também as religiões minoritárias, de raiz africana. Eu não quero isso para o Brasil. Nós conquistamos a democracia a muito custo, eu não quero deixar que essa gente ameace a nossa Constituição cidadã.

O que o senhor faz em Brasília, nas horas de folga?

A minha rotina aqui são as atividades que envolvem a vida parlamentar. Em Brasília, minha vida social é zero. De vez em quando, se sobra um espaço na quinta-feira à tarde, eu me permito tomar uma sauna no Hotel Nacional. Minha vida social é no Rio, mas lá também me falta tempo. A vida pública traz limitações da liberdade, é algo com que você tem que aprender a lidar. Eu fico muito em casa, sou muito caseiro, leio muito, durmo pouco.

Quais são seus planos para 2014?

Para alguns, a política é um rodeio, a ideia é ficar em cima do boi a qualquer custo. Para mim, ela é um cavalo que me leva do ponto A ao ponto B. Ela existe para melhorar nossa vida e eu entrei na política para isso. Eu não trabalho pensando em uma próxima eleição.

Mas pretende se candidatar?

Ainda não me decidi. Pode ser que eu me candidate de novo, pode ser que esse seja o meu único mandato. Minhas bandeiras não dão votos, mas fazem me sentir útil. Eu não tenho medo de não ser reeleito.


Publicado no Correio Braziliense, em 10/06/2012.