A Constituição da República tem um buraco. É possível que tenha
muitos, mas sou pouco exigente e satisfaço-me com referir-me a um só.
Possuímos, segundo dizem os entendidos, três poderes – o executivo, que é o
dono da casa, o legislativo e o judiciário, domésticos, moços de recados, gente
assalariada para o patrão fazer figura e deitar empáfia diante das visitas.
Resta ainda um quarto poder, coisa vaga, imponderável mas que é tacitamente
considerado o sumário dos outros três.
É aí que o carro topa. Há no Brasil um funcionário de
atribuições indeterminadas, mas ilimitadas.
Aí está o rombo na constituição, rombo a ser preenchido
quando ela for revista, metendo-se nele a figura interessante do chefe
político, que é a única força de verdade. O resto é lorota.
Em escala descendente, a começar pelo Catete, onde pontifica
o chefe açu, e a terminar no último lugarejo do sertão, com um caudilho, mirim,
isto é um país a regurgitar de mandões de todos os matizes e feitios.
Está aqui um deputado que é um poço de manha, papagueador
quando parola com o eleitorado, mudo na Câmara, gênero peru; ali está um
presidente de estado que outra coisa não tem feito senão apregoar pelas
trombetas oficiais as maravilhas que ninguém vê, mas que ele teve o louvável
intuito de realizar; temos acolá um advogado ventoinha, equilibrista emérito,
camaleão legítimo; vem depois o comerciante voraz, enriquecido com os favores
clandestinos, negociatas escusas e contrabandos; mais distante, avulta a
majestade rotunda do industrial insatisfeito, empanturrado pelas propinas que a
guerra lhe meteu no bucho.
Todos eles são mais ou menos chefes. Não se sabe bem do que,
mas certo é que o são. Graúdos, risonhos, nutridos, polidos, escovados,
envernizados, lá estão inchando, inchando. São os grossos batráquios da lagoa
republicana. Muitos, menos volumosos, coaxam pelos cantos, chefinhos incolores,
numerosos, em chusma, minúsculas pererecas em poças d’água.
São os donos de todos os municípios destes remotos rincões
que o estrangeiro ignora, que as cidades do litoral conhecem vagamente, através
dos despachos da Agência Americana.
Mandatários do governo, forjadores de eleições, mais ou
menos coronéis, caciques em miniatura, têm frequentemente, para infundir
respeito, uma espada da Guarda Nacional, um boné sebento, um lenço de tabaco e
um par de socos.
Possuem um factótum, pau para toda obra, secretário
particular e muitas coisas mais, criatura que se especializa no mister de
enviar ao presidente ou governador do estado chavões telegráficos de
congratulação pelo aniversário de gloriosas potocas que enchem nossa história.
São, a um tempo, intendentes ou prefeitos, juízes,
promotores, advogados e jurados, conselheiros municipais, comissários de
polícia e inspetores de quarteirão.
Realizam a pluralidade na unidade!
E ainda há quem duvide do mistério da Santíssima Trindade.
Parece-me claro que uma pergunta aqui se impõe: para que
tanta gente de palha a ocupar cargos em penca, a roer sinecuras polpudas nesta
confederação cinematográfica, em que o poder é a coisa mais centralizada deste
mundo, se, desde o tempo dos capitães-mores, um homem só pode administrar,
legislar e julgar a contento das populações sertanejas?
Ponha-se, pois, o chefe político no galarim e mande-se às
favas o resto.
Metam-no, honestamente, em letra de fôrma.
Entre ele, triunfante, com armas e bagagens, em nosso magno
estatuto.
Peguemos o chefe político, agitemo-lo no ar e berremos o
estribilho com que a imprensa, há tempos, nos anda a amolar – A constituição da
república precisa de uma revisão.
Publicado no "Jornal de Alagoas", em março de 1915.
ok
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