domingo, 27 de fevereiro de 2011

Esquerda sem estratégia [por Rudá Ricci]

Do Partidão à Crise do Mundo Soviético

Nos anos 1950 e 1960, a esquerda brasileira era hegemonizada pelo PCB, o partidão. Ao lado de uma ala mais esquerdista do PTB, da ala de Francisco Julião envolvido com as Ligas Camponesas, da Ação Popular nascida da JUC (Juventude Universitária Católica) e algumas fluidas organizações relacionadas à Leonel Brizola, o PCB reinava com uma leitura exótica, mas verossímil, sobre o Brasil: carregávamos os resquícios de um mundo feudal. Daí, desmembrava-se toda uma lógica de alianças de classes consideradas “progressistas” que poderiam banir o atraso e instalar um modelo capitalista clássico. Em poucas palavras, esta era a estratégia central: compor uma evolução por etapas. Hoje, sabemos que havia divisões internas no PCB, mas esta era a linha oficial. As outras organizações de esquerda não concordavam com esta estratégia e muitas sugeriam que não era na cidade que residia a energia moral da revolução. A leitura que mais tarde jogaria as ligas camponesas nos braços do castrismo e, mais adiante, do PCdoB, colocava o campo no centro da organização revolucionária. Já a Ação Popular (AP) caminhou por Minas Gerais e Maranhão e desenvolveu os fundamentos do que se denominaria de “trabalho de base”, utilizando rádios e métodos de educação popular para organizar sindicatos. Algumas poucas organizações trotskistas mantinham pouca influência política.

De 1961 ao golpe militar, abriu-se uma vaga de rachas no interior do partidão que se acelerou com o regime militar e após o AI-5. As inúmeras organizações, da POLOP à ALN, da ALN à Ala Vermelha, e tantas outras como PCdoB, MR8, MRT, MEP, VAR-Palmares, VPR, PCBR, havia poucas leituras distintas sobre a realidade brasileira. As divergências se davam sobre a organização urbana foquista ou a estrutura de guerra civil prolongada no campo, se centralizada num comitê central ou se segmentada com focos semi-autônomos, mas pouco diferiam sobre a estratégia: o Brasil vivia uma ditadura que seria expressão da crise do capitalismo, o que transformava as organizações de esquerda em estruturas de propaganda e direção da luta revolucionária para a derrubada do regime militar. O debate sobre o atraso ou desenvolvimento em que o país estaria mergulhado foi quase marginal entre as forças de esquerda, e talvez teve na POLOP uma voz dissonante.

De 1969 a 1974 a esquerda brasileira foi praticamente dizimada. A partir daí, tivemos um longo processo de mea culpa e revisão das leituras sobre o país. O vanguardismo foi a tônica de grande parte das vozes críticas. Parte do PCdoB sugeriu uma maior relação com organizações civis na busca de um trabalho político educacional de massas. Parte das organizações aproximou-se das teses de Gramsci que sugeria a disputa da hegemonia política e cultural, criando hábitos e valores a partir de um discurso que acolhia crenças populares e práticas comunitárias. Paulo Freire retornou à tona e a velha rejeição à igreja esvaneceu.

Pautas mais gerais e populares foram, pouco a pouco, surgindo como elementos de mobilização social, caso da luta pela anistia política, pela defesa da soberania brasileira na Amazônia, contra a carestia, pelas demandas sociais nas periferias das cidades (em especial, pela saúde pública) foram se entrelaçando. Mesmo não aparecendo nos documentos oficiais de muitas organizações de esquerda que se reconstruíam no período final dos anos 1970, era evidente que havia uma inflexão em curso, da clandestinidade á ação democrática à luz do dia, do vanguardismo à organização popular de massas, da pauta centralizada pelas cúpulas políticas às pautas que incomodavam os cidadãos mais pobres nas periferias das cidades ou no chão das fábricas e fazendas. A Teologia da Libertação foi, neste sentido, a expressão maior deste amálgama e revisão. Não que as organizações de esquerda tivessem se infiltrado na igreja católica. Ao contrário: a vitalidade e engajamento de parte da igreja católica abriram espaços e sugeriram sutilmente os rumos a serem tomados. Ainda sem uma leitura clara do que ocorria no Brasil, a esquerda experimentava finalmente a crise do regime militar, ferido pela crise de financiamento externo e aumento das taxas de juros internacionais que tiveram no aumento do preço do barril de petróleo (em 1974 e final dos anos 1970) o veneno que contaminou todo sistema produtivo ocidental.

Enfim, entramos na década de 1980 respirando novos ares políticos em plena crise econômica internacional. A década perdida da nossa economia foi a década do florescimento político do país. A esquerda, que até então vinha se acomodando no interior da única organização partidária legal de oposição, o MDB, revelou suas diferenças aos poucos. PT foi a primeira expressão pública das diferenças, acolhendo uma multiplicidade de organizações clandestinas e semi-clandestinas, envolvendo muitas organizações trotskistas (como Convergência Socialista, Liberdade e Luta, Democracia Socialista), rachas do PCdoB (como a “ala rosa”), parte do espólio da ALN e Ala Vermelha, MEP, MCR e outras. Mais tarde, o PCB e o PCdoB também apareceram no espectro partidário nacional, além do PDT brizolista e várias incorporações ao PMDB (parte do partidão, do PCdoB e MR8 quercista, entre outros). O que alimentava as diferenças? Primeiro, o caráter da democracia brasileira, se uma transição em risco ou um processo irreversível de democratização. Depois, a necessidade de criação de um novo partido operário.

Finalmente, a crítica ao mundo soviético. Em outras palavras, a esquerda se dividia entre cautela e ousadia política (o que a transformava em coadjuvante ou protagonista do sistema partidário vigente). Ou, ainda, entre uma concepção clássica de organização centralizada e hierarquizada de partido (as várias vertentes do partido de vanguarda leninista) e um partido de massas, enraizado na base social e com formas de participação e influência direta do filiado nas decisões capitais do partido. Até que, ao longo dos anos 1990, o PT resolveu trilhar os passos do Partido Trabalhista Inglês e passou a pressionar pela expulsão das organizações não totalmente integradas organicamente (ou disciplinadas), abandonar paulatinamente o projeto socialista e focar a vitória eleitoral como objetivo central. A vitória eleitoral, lembremos, é para esquerda um meio e não um fim. A queda do Muro de Berlim e todo a referência do mundo soviético para grande parte da esquerda internacional parece ter aberto a licença para a realpolitik entre tupiniquins. Mesmo o PT, que nasceu se contrapondo ao mundo soviético, parece ter respirado aliviado e foi paulatinamente abandonando o jargão e as premissas de esquerda, até mesmo as socialistas libertárias.

O projeto de esquerda na virada do século XX

A esquerda existe por um projeto de mudança, de ruptura com a desigualdade social e política. Norberto Bobbio, pouco antes de falecer, sugeriu num pequeno texto provocativo, que a diferença entre esquerda e direita contemporâneas está na ênfase da defesa da busca da igualdade social (esquerda) ou da liberdade individual (direita).

Já sugeri em texto anterior que a pauta da esquerda mundial nos tempos atuais é a democracia deliberativa (mais que a participativa) porque é a crença no coletivo e na espécie humana. É nesta prática de alargamento do processo de tomada de decisão no interior do Estado (a participação, portanto, se torna um mecanismo institucional e não esporádico) que se produz a igualdade formal e por onde as demandas sociais se tornam políticas públicas. A defesa da participação direta do cidadão na gestão pública (e não apenas aquela em que o eleitor elege um representante, o mais competente entre todos), postula que toda humanidade tem inteligência e, portanto, capacidade para governar.

Outro aspecto que compõe a pauta da esquerda mundial é a defesa do desenvolvimento sustentável que, aliás, se articula com o de democracia participativa e com o conceito de condições de reprodução das condições de trabalho. O conceito de desenvolvimento sustentável é oposto ao de progresso, de linha reta para um determinado padrão - normalmente, o padrão europeu ou norte-americano é o utilizado para explicar o que é progresso. Parte do princípio que os homens possuem cultura específica, experiências próprias e que o desenvolvimento precisa respeitar tais peculiaridades. O desenvolvimento, por sua vez, é entendido como integral - pessoal, humano, espiritual, social, econômico, produtivo, tecnológico. A base desses dois princípios (democracia deliberativa e desenvolvimento sustentável) é a promoção humana, contrário do individualismo ou mera proteção social. Na proteção (em políticas públicas), a ação do Estado se limita a garantir a sobrevivência da pessoa. É uma noção liberal, que foi esboçada na virada do século XVII para XVIII. Os liberais acreditavam que os homens são diferentes e que os mais capazes sempre terão uma vida privilegiada. Nessa perspectiva, o papel do Estado seria apenas o de garantir condições para que todos possam competir entre si (garantir saúde, educação e segurança). O restante estaria por conta de cada um, da competição. É daí que nasce a noção de proteção, ou seja, de apenas garantir a sobrevivência individual, mas não a melhoria de vida. A melhoria de vida seria resultado de uma ação exclusivamente individual. O conceito de promoção que partilhamos é outro.

Significa acreditar que ninguém é capaz de se desenvolver por si só e que as condições do passado sempre limitarão o crescimento individual. Assim, uma pessoa, filho de favelados e que é favelado, sempre terá menos chances do que aquele que nasceu em berço abastado e que aprende a ler, tem uma biblioteca à sua disposição (além do cargo de direção garantido na empresa dos pais). O papel do Estado seria de promover (promoção) continuamente a possibilidade humana, tanto para os mais pobres como para os mais ricos. Ninguém pode ter seu potencial limitado. Em outras palavras, o Estado deveria promover, sem limites, o acesso a obras de arte, cursos de pintura, literatura, teatro, tecnologias de ponta, financiamento público para abertura de negócios, educação de ponta, intercâmbio etc. Não há limite ao crescimento da humanidade e o Estado seria um suporte para tal condição.

Finalmente, o internacionalismo. É um conceito coerente com o respeito à espécie humana. O inverso do nacionalismo. Ser nacionalista é defender a diferença abstrata entre os homens. A nação é sempre uma abstração. Raramente é uma escolha coletiva - ocorreu, por exemplo, na criação do Estado de Israel, nas revoluções de libertação na África ou nos movimentos separatistas contemporâneos, como é o caso da ex-Iugoslávia. Nesses casos, a criação de uma nação, como regra, se deu na disputa entre grupos que desejavam governar um território. O internacionalismo revela a crença no mundo sem fronteiras. Na troca de experiências. Na oposição ao racismo e à xenofobia.

Ora, se formos sinceros fica evidente que desde os anos 1990 uma pauta – que não seja esta que indiquei acima – qualquer escapou por entre os dedos da esquerda brasileira. Retornamos aos anos 1960 sem a estratégia – mesmo que equivocada – que existia naquele período.

Esta é uma possível pauta. Mas algo do gênero, ou mesmo oposta a esta agenda, é proposto pela esquerda brasileira nos dias atuais? Não. O que temos é um profundo ressentimento que (ou adesismo) em relação ao lulismo.

Lulismo como idéia-fixa

O lulismo torna-se uma referência quase obrigatória em todos os textos e documentos internos de todo espectro à esquerda do mundo político. Fora desta tábua de salvação (ou de sedição, dependendo da agremiação em questão) resta o mundo do trabalho, mais especificamente, o mundo sindical. Aí parece ainda existir vida que pulsa para as agremiações de esquerda. Mas mesmo neste campo, parece viver um labirinto, cercada pela realpolitik e construção de arenas neocorporativas. Talvez este seja o problema central da falta de estratégia da esquerda brasileira: a sociedade civil não se vê representada nas estruturas clássicas de organização partidária. Na medida em que a esquerda não consegue mais se alojar, representar e conseguir ter canais de comunicação com as ruas, ela deixa de ser a esquerda como historicamente se constituiu. Enquanto teoria, o pensamento de esquerda não tem como centro a manutenção do Estado mas, em nosso país, passou a se limitar a este tema. O fato é que a identidade original da esquerda nunca foi a manutenção do aparelho de Estado. Pelo contrário, era justamente a construção de um projeto que abriria o Estado cada vez mais ao controle da sociedade (ou, para alguns, para o controle de um segmento de classe). Desde a análise sobre a Comuna de Paris, em Marx; passando pelo poder dos sovietes que se tornou slogan na revolução russa; passando pelos estudos do exílio mexicano de Trotsky; pelos estudos sobre conselhos operários de Gramsci, Togliati e os comunistas articulados ao redor do Il Manifesto. Apenas para citar clássicos.

Enfim, talvez exista uma esquerda brasileira não partidarizada, talvez engajada em ONGs, fóruns e redes. Algo novo que ainda não consegue se projetar claramente no espaço público. Mas é uma mera hipótese de análise. O fato é que a esquerda organizada em partidos nunca esteve, em nosso país, tão acabrunhada, tão sem estratégia nítida, tão fechada em guetos.

Rudá Ricci é Sociólogo, Mestre em Ciências Políticas e Doutor em Ciências Sociais. Diretor Geral do Instituto Cultiva e membro da Executiva Nacional do Fórum Brasil do Orçamento (www.forumfbo.org.br). Membro do Observatório Internacional da Democracia Participativa.

Um comentário:

  1. um bom texto.
    mas a esquerda antes era tambem sinonimo de facismo, de sangue correndo nas ruas pro comuna mandar nos palacios.
    a esquerda hoje assume o papel de "sou governo, é minha hora e teoria é teoria, o que importa são os cargos e o poder"

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