sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Patrulhas ideológicas e patrulhas pop. [por Arnaldo Jabor]

Meu filme A Suprema Felicidade está sendo aplaudido em cinemas cheios. Pensei: “Oba! O filme é legal; estão gostando!” Uma espectadora me escreveu: “Saí do cinema lotado de pessoas que aplaudiam. Parecia que uma seca tinha acabado. Os que se falavam depois do filme, brindavam com olhos úmidos e a alma encharcada na alegria da dor comum a todos, serenamente revelada.”


Fiquei feliz com o email, mas logo vi que estava errado… Descobri que sou um mero “mané” que se ilude. São outros os que sabem a verdade. Os críticos da Folha e da Vejinha decretaram que o filme não merece nem uma análise; apenas frases de pichação, breves xingamentos. Eles são taxativos e cruéis como ativos militantes de novas patrulhas “contemporâneas”: “Ele não é mais cineasta” ou “a narração é que estraga…” ou ainda “muitos temas, sem foco” e ainda “acaba de repente”. Só isso?


É. O filme tem críticas ótimas com bonequinho batendo palma no O Globo e quatro estrelas no Estadão, mas, na minha trêmula insegurança, só penso nos quatro que trataram o filme como um objeto descartável, um lixo ridículo. E mais: criticam-me mais que o filme. Por que essa raiva? Por quê? Será que eles estão certos? Será que as 180 mil pessoas que já assistiram ao filme em 13 dias, e que fazem a renda crescer no cinema com um boca a boca fervoroso, são um bando de idiotas?


Resolvi entender isso. Pensei, pensei, não só pela vaidade ferida, claro, mas também para denunciar a estupidez de cadernos culturais que viraram meros releases de produtos de massa. Cresce no País uma cultura da incultura, a profundidade do superficial, a rapidez do julgamento, num mundo feito de fugazes emails, celulares tocando, filmes com imagens que não podem ter mais de quatro segundos, porrada, corrida, sem saída, até sem “roteiro”, essa coisa antiga do tempo em que os homens (e não robôs e transformers) se relacionavam.


Está fora de moda um filme para ser visto, refletido, com choro, risos, vida… Cinema agora é para manipular os espectadores, que são o videogame da indústria. O desejo dos produtores é justamente apagar o drama humano dentro de nossas cabeças. A ação na tela é incessante, o conflito é permanente, de modo a impedir o espectador de ver seus conflitos internos.


Acontece, patrulheiros pop, que A Suprema Felicidade foi feito justamente contra essa tendência – quero que os espectadores se sintam dentro do filme e não que sejam levados por porradas, som dolby e homens explodindo.


Eu sei que vocês foram modificados geneticamente por décadas de videoclipes, eu compreendo que vocês achem o Michel Gondry o novo Goddard e que o flash-back foi inventado pelo Tarantino. Imagino vosso tremor na hora da entrevista de emprego, com o diretor do jornal perguntando: “Conhece literatura, política, antropologia?” “Não, senhor…” “OK… Secretário, bota ele na crítica de cinema…”


Há em vocês uma esperteza ambiciosa por trás de tanta brevidade implacável – é duro passar a vida botando bolinha preta no Piranha. O cara precisa criar eventos que o promovam.


Eis que, de repente, aquele sujeito que fala na TV, escreve em 20 jornais, fala no rádio há 15 anos, resolveu fazer seu nono filme.


Vocês gritam: “Vamos quebrar a espinha dele!”


Compreendo que isso dá prestígio; é um upgrading. O sujeito entra na redação de testa alta e lábio trêmulo: “Esculachei a besta do Jabor!” E é olhado com cálida admiração.


Ato de violência. Aí, percebi que não apenas a patrulha pop pautou seus críticos. Lembrei da devastadora crítica de Eduardo Escorel na revista Piauí – (não confundir com Lauro Escorel, o grande artista que fotografou o filme). Lembro mesmo que corri à piauí com a esperança de aprender teoria com o velho autor de remotos filmes, como a história sinistra de um esquartejador e a adaptação dialética do Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado. Dele eu esperava opiniões cultas, conspícuas frases sobre Bergman, Fellini. Eu esperava encontrar André Bazin e dei de cara com Andrei Zhdanov, o supremo censor de Joseph Stalin (olhem no Google, meninos…)


Mas, mesmo assim, esquartejado, tentei entendê-lo. E tive a revelação, vi a luz!


Eduardo tinha uma missão política, senhores, iluminista mesmo: ele quis salvar o público das mensagens reacionárias que devo ter embutido no filme. Por isso, ele correu a Alphaville, para ver o filme quentinho, ainda no laboratório. Ele correu antes para avisar o povo: “Não vá!… Fuja do demônio neoliberal que fez um filme de época sem mostrar Getúlio ou a luta de classes.”


Ele deve ter zelosamente pensado: “Vou pautar também os jovens tenentes das novas “patrulhas pop”, porque eu sou egresso das velhas patrulhas ideológicas descobertas por Cacá Diegues e tenho esta missão.”


E conseguiu; parabéns, doce Zhdanov com seu lento sorriso superior. Foi um alívio. A sociedade estava salva.


Mesmo assim eu ainda entendo o homem. Sei que grandes frustrações na vida se compensam por elusivas fantasias de grandeza. Sei que a onipotência não realizada, o narcisismo que parou no meio provocam ódio e entendo que ele tenha buscado, digamos, “profissionalizar” seu rancor. Assim, ele descolou esse “bico” para aliviar sua dor interna. Deve ter pensado: “Boa ideia… serei implacável contra todos que ousam fazer filmes corrompidos pelo sucesso e pelo público enganado.”


Confesso que admiro sua integridade de não poupar nem amigos nem parentes.


Mas, aí… esbarrei com a frase: “Jabor sempre pareceu mais um “diletante” que um cineasta profissional.” Aí, não. Depois de ter trabalhado 30 anos em cinema, fazendo nove filmes, ouvir isso não dá. “Diletante” é você, cara, que fez dois ou três filmes medíocres que sumiram da história de nosso cinema.


E, no final, outro insulto, quando ele diz que, vendo esse filme, ele não tem mais dúvidas de quem sou eu…


Respondo: Se você pudesse saber quem eu sou, você não seria o que é.


E mais, ridículo censor do trabalho alheio: “A dignidade severa é o último refúgio dos fracassados.” É só.



Nenhum comentário:

Postar um comentário