Por
que a Nike lançou uma linha de tênis e camisetas com o nome de Mano Brown sem
tomar a precaução de fazer um contrato com ele? Os produtos WFC Mano Brown
estiveram, até faz pouco tempo, à venda em lojas da marca por todo o mundo e
também na internet. A resposta é que a Nike não teme nenhumas consequências que
possivelmente adviriam de um ato assim. Parece que, sobretudo num país como o
Brasil, as grandes corporações agem como se não estivessem ligando muito para
os direitos de indivíduos mais fracos do que elas.
Digo sobretudo no Brasil
porque me contam que aqui as indenizações são, por lei, calculadas a partir do
poder aquisitivo de quem as recebe. Ou seja, a vítima de um uso abusivo de seu
nome ou imagem será compensada de acordo com o lugar na pirâmide social que ela
já ocupa: terá direito a muito se for rico; se for pobre ou remediado, terá
direito a muito pouco ou a simplesmente pouco. Sendo assim, qual a empresa que
fará cálculos levando em consideração a honra e a dignidade de quem quer que
seja?
Mano
Brown é uma referência para moradores de favelas por todo o Brasil; para
músicos inteirados do que se passa na cultura popular contemporânea;
para adolescentes de todas as classes sociais; para aspirantes a poetas. Chico
Buarque já citou mais de uma vez o rap (ou o hip-hop em geral) como a
verdadeira música de protesto do nosso tempo: não é feita por universitários
bem nutridos que se comovem com o sofrimento dos excluídos, mas pelas próprias
vítimas da exclusão. Os Racionais MCs, grupo de que Mano Brown é líder,
representam o ápice da cultura hip-hop entre nós.
Nascido
da importação de formas musicais jamaicanas por músicos do Bronx, em Nova York
- não sem a referência da música eletrônica alemã do Kraftwerk, da disco music,
da capoeira, dos discípulos de Marcel Marceau e dos filmes de Bruce Lee -,
o hip-hop, disparado por Clive Campbell (Kool Herc) e Afrika Bambaataa, vem
sendo, desde que se tornou amplamente conhecido, a partir do início dos anos
1980, a expressão mais acabada de uma mistura de nacionalismo negro com direito
à visibilidade das camadas desfavorecidas. Como tal, nenhuma outra forma de
arte popular ou de massas se lhe pode comparar em força internacional,
superadora do modelo de distribuição que tem os Estados Unidos como centro
gerador. Ainda é a vontade feladaputa de ser americano que (como, modéstia à
parte, sinteticamente eu disse numa canção de homenagem a Raul Seixas) atrai
jovens do mundo todo para o hip-hop, como já o fizera com o blues, o jazz, a
canção da Broadway e o rock.
Mas nenhum desses gêneros tinha no seu DNA (que
quando eu era estudante ainda se chamava ADN) a impressão digital de criadores
vindos de fora dos EUA. A Jamaica de onde veio, na memória de Campbell, a
colagem de falas ao vivo com ritmos gravados, contribuiu no nascedouro, não com
uma tradição primitiva a ser utilizada por americanos sofisticados, mas com uma
nova formulação de elementos expressivos. Há um livro excelente sobre
o assunto: "Infectious rhythm", de Barbara Browning. Assim, a ênfase
no nacionalismo negro sobre o brasileiro - e a autodefinição de classe por
sobre a de região ou nacionalidade - se dá de forma mais legitimada do que
nunca. O álbum "Sobrevivendo no inferno", dos Racionais, é a
obra-prima dessa experiência entre nós.
É por sua autenticidade e força poética que esse disco se coloca no centro do coração de tantos adolescentes desde que foi lançado, perto do final da década de 1990. De minha parte, como ponho, por programa, o sonho do Brasil acima de todos os outros elementos de todas as outras dialéticas, adivinho nesse apego das sucessivas gerações de garotada pelo rap uma vivência inconsciente da talvez principal missão do nosso país: salvar a África. Não apenas o maior dos continentes e o lugar de origem da raça humana, mas também todo o grande sentido da sofrida diáspora de seus primitivos habitantes na violência da maré montante do Ocidente e do Cristianismo. Então é com reverência que olho para Pedro Paulo Soares Pereira, Mano Brown e seus amigos que, como ele, tomaram apelidos tirados da língua inglesa: Edy Rock, Ice Blue e KL Jay.
É por sua autenticidade e força poética que esse disco se coloca no centro do coração de tantos adolescentes desde que foi lançado, perto do final da década de 1990. De minha parte, como ponho, por programa, o sonho do Brasil acima de todos os outros elementos de todas as outras dialéticas, adivinho nesse apego das sucessivas gerações de garotada pelo rap uma vivência inconsciente da talvez principal missão do nosso país: salvar a África. Não apenas o maior dos continentes e o lugar de origem da raça humana, mas também todo o grande sentido da sofrida diáspora de seus primitivos habitantes na violência da maré montante do Ocidente e do Cristianismo. Então é com reverência que olho para Pedro Paulo Soares Pereira, Mano Brown e seus amigos que, como ele, tomaram apelidos tirados da língua inglesa: Edy Rock, Ice Blue e KL Jay.
Eles
nos têm ensinado a sobreviver no inferno. Brown não pode ser submetido aos
caprichos ditados pelo lucro de uma grande marca. Quem desce aos infernos está
mais apto a ressurgir dos mortos e subir aos céus - e sentar-se à mão direita
de Deus Pai.
A cultura hip-hop,
como não podia deixar de ser, contaminou-se da ética das gangues, do mandonismo
dos traficantes, da adoração à afirmação capitalista de automóveis, bebidas
caras e roupas de grife: o gangsta rap americano (que não deixou de ser
relevante esteticamente por isso) está cheio de exemplos. Mas isso são cores do
complexo fenômeno. Em seu sentido mais abrangente e mais profundo, o hip-hop é
a exibição de força dos que começam a construir a onda ascendente que há de
mudar o mundo. Suas versões brasileiras são particularmente dignas. Mano Brown
é o rei e o profeta. Não pode ser lançado ao desrespeito. Se ele não fez
contrato com a Nike para dar seu nome a produtos dela - e não fez -, a Nike
deve, cedo ou tarde, saber que tem que pagar caro pela desatenção. O que mais
assombra nas euforias capitalistas é o irrealismo. O grupo de pessoas que
decide passar a perna em alguém grande como Brown pensa que representa a
esperteza. Na verdade, representa o delírio, o engano, a falha total.
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