Não há mais como escamotear. A era dos conceitos
clássicos que banhavam a política está cedendo lugar ao ciclo da
personalização, cujos contornos apontam para a prevalência dos indivíduos sobre
as ideias, o predomínio da forma sobre o conteúdo.
As ideologias, nesse início de segunda década do
século XXI, bifurcam-se na encruzilhada dos desafios de nações às voltas com
profunda crise econômica. O continente europeu, berço da civilização
democrática, é o cenário mais visível dessa mudança.
Aí, a esquerda desloca seu eixo piscando para a
direita, atenuando as cores do seu antigo discurso. Já não eleva ao alto do
mastro a bandeira da “propriedade coletiva dos meios de produção”. Nem a
provável vitória de François Hollande, hoje, nas eleições presidenciais
francesas, significará a entronização do pavilhão vermelho no Palácio do
Eliseu.
O moderado líder finca pé na justiça social –
escopo central dos partidos de esquerda – mas deixa ver a inclinação para a Terceira
Via, mescla de elementos do socialismo e do liberalismo, criada por Tony Blair
(1997-2007), a partir do Reino Unido, e endossada pelo então primeiro ministro
alemão Gerard Schröder (1998-2005).
O estudioso de linguagem política, Damon Mayaffre
(O Estado/29/04/2012), ao constatar tal fato, registra que o empobrecimento do
discurso, particularmente na França e no Reino Unido, é um fenômeno que ocorre
há 50 anos.
No velho discurso, podia-se ler um acervo composto
por conceitos como liberdade, igualdade, democracia, capitalismo, socialismo.
Hoje, países democráticos, centrais e periféricos, entre os quais o Brasil,
usam esses substantivos sem muita convicção.
Recorde-se que a esquerda começou a redesenhar seu
ideário após o esfacelamento do comunismo. A solução foi juntar os tijolos
fragmentados do socialismo à argamassa do liberalismo.
Sob a nova composição, a política abriu espaço para
novas formas de contestação e novos pólos de representação, hoje presentes na
miríade de grupos, entidades e organizações sindicais. As clivagens partidárias
do passado ganharam nova roupagem, na esteira do arrefecimento do antagonismo
de classes e do enfraquecimento dos particularismos ideológicos.
O desvanecimento dos mecanismos tradicionais da
política – partidos, parlamentos, ideologias, bases – e a criação de um novo
triângulo do poder, juntando esfera política, burocracia governamental e
círculos de negócios, fizeram emergir a era do EU, povoada por líderes e
mandatários de todos os espectros, cada qual portando as vestimentas
fosforescentes do Estado-Espetáculo.
Assim, o progressivo declínio das estruturas
clássicas da política propiciou, em contraponto, um fluxo ascendente de
personagens que passaram a ter visibilidade na onda midiática.
A forma tornou-se mais importante que o conteúdo.
São um exemplo nossas campanhas eleitorais, cheias de cosmética e centradas em
fulanos, sicranos e beltranos.
Pela importância da França na textura democrática,
é razoável supor que o redesenho do discurso que ali se pratica serve para
espelhar o atual estado da política no mundo. A começar pela desconstrução que
o presidente francês promoveu em sua identidade.
Damon Mayaffre mostra que, em sua primeira
campanha, Sarkozy identificou-se plenamente com o espírito da direita – puxando
conceitos como moral, mérito, trabalho, esforço, civismo. Agora, ataca as
instituições da República, como Justiça, imprensa, sindicatos. No fundo,
trata-se de um ataque a ele mesmo, eis que o presidente encarna o espírito
republicano e, por conseqüência, seus corpos intermediários.
A postura tinha lógica em 2007, quando se elegeu
com o slogan da ruptura. Mas hoje esse ideário serve à família Le Pen (Marine e
seu pai, Jean-Marie) e à Frente Nacional, beneficiários maiores do pleito
francês. Formou-se o paradoxo: Sarkozy pregou o dissenso e o opositor,
Hollande, defendeu o consenso, quando a lógica sugeria o contrário.
O que podemos extrair da lição francesa para a
nossa realidade? Os recados são claros. Vejamos.
Ponto um: não há mais sentido brandir bordões e refrãos
insuflando luta de classes, pobres contra ricos, socialismo contra liberalismo.
Parcela de nossos representantes continua a erguer bandeiras rotas.
Ponto dois: atacar as estruturas intermediárias da
República – Parlamento, Judiciário, imprensa – é desconstruir o próprio
edifício da Democracia. Desvios cometidos por pessoas físicas não podem ser
confundidos com a importância das instituições democráticas. No entanto, viceja
por estas plagas uma peroração que defende o controle da mídia, a revelar a simpatia
de grupos pelo Estado autoritário.
Ponto três: o combate às elites políticas por parte
de quem as integra soa demagógico. Mandatários que escalaram os degraus da
pirâmide para chegar ao topo devem saber que também eles integram o Olimpo
elitista.
Ponto quatro: trata-se de um risco ancorar a
estabilidade de um governo sobre uma base nacionalista e protecionista. A
deriva populista que uma atitude nessa direção proporciona, apesar de gerar
conforto no curto prazo, ameaça comprometer o conceito internacional de um
país.
Olhe-se para os casos da Argentina e da Bolívia. A
decisão da presidente Cristina Kirchner de nacionalizar 51% do patrimônio da
petrolífera YPF, controlada pela espanhola Repsol, e a decisão do presidente
Evo Morales de expropriar as ações da rede elétrica espanhola SAU, podem até
servir à almejada estratégia de aprovação popular. Quem garante que, mais
adiante, não se transformarão em bumerangue?
Decisões dessa ordem têm o condão de conferir aos
governantes uma imagem situada na banda esquerda do arco ideológico. Mas a
esquerda tem sofrido, e muito, para debelar o caos econômico.
A Europa que o diga. Ali, a crise fez cair, nos
últimos três anos, 11 dos 15 governos de esquerda ou de centro-esquerda
(Espanha, Reino Unido, Portugal, Bulgária, Finlândia, Hungria, Irlanda,
Letônia, Lituânia, Eslovênia e Holanda). O aviso é oportuno: medidas populistas
têm fôlego curto.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação.