“Niilismo e negritude” aborda saberes tradicionais africanos com um olhar cosmopolita. Como se dá na África o equilíbrio entre a preservação das tradições locais e a necessidade de integração econômica e cultural com o resto do mundo?
CÉLESTIN MONGA: A África já está bem integrada econômica e culturalmente com o mundo, mas segundo termos que lhe são desfavoráveis. Um exemplo simples: “Waka waka”, a última canção de sucesso da colombiana Shakira, nada mais é que uma reprise de uma música do grupo camaronês Zangalewa. Shakira e seus produtores na Sony Music ganharam milhões, enquanto os pobres artistas camaroneses que a compuseram apenas ouvem falar dela. Acabo de voltar de uma viagem à China, onde vi indústrias que exploram motivos e padrões desenhados pelas mulheres do Mali para produzir lindos tecidos, que são vendidos ao redor do mundo sem que as africanas lucrem com isso… A questão fundamental é desenvolver uma estratégia de gestão de seus saberes num mundo “globalizado”. Trata-se de se organizar para continuar a par com o mundo, participar ativamente das trocas intelectuais, culturais e econômicas, renovar constantemente sua criatividade preservando seus interesses. É o que o poeta e ex-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001) chamava de “o encontro do doar com o receber”, uma expressão muito bonita. Ninguém pode fazer isso sozinho. Os Estados precisam organizar seus quadros institucionais e regulamentares para esse tipo de coordenação.
Como funcionário do Banco Mundial, acredita na necessidade de auxílio internacional à África? Que tipo de auxílio?
MONGA: Nenhum país em desenvolvimento saiu da pobreza por causa do auxílio ou da caridade internacional. O desenvolvimento é o resultado de um processo endógeno pelo qual os agentes econômicos de um país se organizam para mobilizar os fatores de produção, como a força de trabalho, o capital e os recursos naturais, para criar riqueza e aumentar constantemente a produtividade. O auxílio ao desenvolvimento não pode substituir esse processo interno. Ele pode contribuir, de forma marginal, para a construção de infraestruturas ou o financiamento da educação e dos programas sanitários. Mas ele não pode ser a receita mágica do desenvolvimento. O problema de muitos países africanos é acreditar que o Banco Mundial pode resolver seus problemas por eles. Isso os coloca numa posição de auxiliados permanentes. Acostumar-se ao auxílio é nefasto como todo vício, pois infantiliza e desresponsabiliza.
“Niilismo e negritude” tem passagens críticas sobre a influência da Igreja Católica como “instituição social” em Camarões. Quais são os pontos mais negativos dessa influência?
MONGA: O histórico das igrejas da África é manchado pelos equívocos coloniais e assombrado por sua relação incestuosa com regimes políticos opressivos. Muitos homens e mulheres de igreja fazem um trabalho honorável em prol das populações, desempenhando um papel de assistentes sociais, de mentores, de confidentes e até de psiquiatras. Mas a instituição religiosa na África funciona como as burocracias dos antigos partidos únicos. Muitos de seus membros exploram abusivamente sua posição de “reserva moral” para satisfazer suas fantasias de poder. Outros são paranoicos e veem o mal por todo lado. Prisioneiros de sua amargura e nauseados pela permanência em querelas étnicas microscópicas, eles vivem mal sua vocação e se perguntam por que não são promovidos a “funções importantes”. Recitam as Escrituras e carregam a cruz de Jesus sobre o coração, mas são habitados por uma dose de cólera e maldade que espantaria os personagens menos recomendáveis da Bíblia.
Como sua noção de “niilismo” pode ajudar a pensar a África contemporânea? Que pensadores mais influenciaram seu trabalho?
MONGA: Quis mostrar outras Áfricas, aquelas que invalidam os clichês. Quis compreender a extravagância da bondade em lugares onde se supõe não haver nada além de sofrimento. A esperança é a verdadeira matéria prima e verdadeira riqueza da África, mas se trata de uma esperança niilista, confinada, sensata. O niilismo não é apenas uma “mortal fadiga de viver, uma morna percepção da inutilidade de todo esforço”, como dizia Paul Bourget. Na África, é sobretudo uma celebração do absurdo. Entre meus autores preferidos estão Emil Cioran, Fernando Pessoa, Schopenhauer e Nietzsche. Mas entre minhas influências filosóficas conto também minha avó Mami Madé, uma senhora de quase 90 anos que vive num vilarejo nas montanhas do oeste de Camarões e ainda trabalha dez horas por dia. Também admiro o filósofo camaronês Fabien Eboussi Boulaga, o historiador senegalês Cheikh Anta Diop, o sociólogo camaronês Jean-Marc Ela; os escritores Sony Labou Tansi (Congo), Chekih Hamidou Kane (Senegal), Mongo Beti e Paul Dakeyo (Camarões), entre outros.
Que papel tiveram na sua formação os intelectuais do movimento Negritude (corrente de pensamento que defendia a valorização da cultura negra em países africanos colonizados)?
MONGA: Um papel essencial, mas minha “negritude” não tem nada a ver com a deles. Quando encontrei Aimé Césaire na Martinica, em 1988, disse a ele que era o homem da minha vida, e ele sorriu. A leitura de seu livro de poemas “Caderno de um retorno ao país natal”, aos 15 anos, me ensinou sobre a importância do amor-próprio. Eu o admiro muito. Por outro lado, embora eu considere Léopold Sédar Senghor um grande poeta, era a meu ver um intelectual mediano e um político medíocre. Seus 15 primeiros anos de poder no Senegal foram autoritários, ele nunca conseguiu libertar seu imaginário dos estigmas da colonização francesa. Nasci logo depois da independência de Camarões e cresci sob o autoritarismo do partido único que homens como Senghor haviam teorizado. Por isso me sinto distante dele.
No livro “Um banto em Washington”, que será publicado no Brasil em breve, você narra os episódios que levaram à sua prisão em 1991. Esse tipo de coerção política ainda existe no governo de Paul Biya?
MONGA: Infelizmente, sim. Ainda que as técnicas de autoritarismo estejam um pouco mais sofisticadas, sobretudo contra personalidades de maior destaque, os reflexos são os mesmos. Jornalistas pouco conhecidos, mas que incomodam muito, são intimidados — alguns desaparecem misteriosamente, outros são presos e torturados até a morte nas prisões. O mesmo regime continua no poder. Em agosto, fui a Camarões para a cerimônia fúnebre de Pius Njawe, o jornalista com quem fui julgado em 1991. Ele faleceu num acidente automobilístico durante uma conferência em Washington e sua família me convidou a ler um texto em sua homenagem. Havia cerca de 20 mil pessoas no funeral. No momento em que me levantei para ler, vi correr em minha direção um indivíduo agitado, acompanhado de um soldado. Era o governador local que, agindo em nome de seu presidente, vinha arrancar o microfone de mim. A multidão ficou furiosa e queria linchá-lo. Mas não deixamos que essa cerimônia de luto se transformasse num caos sangrento. Foi lamentável.
Como você vê o regime de Paul Biya hoje?
MONGA: Dizer que o regime é formado por pessoas sem visão nem estratégia seria banal. O mais grave é que a miséria material se transformou em miséria afetiva e psicológica, a tal ponto que cada funcionário regional, sobretudo se afunda sob o peso de um título oficial vazio, se julga constantemente obrigado a se humilhar para merecer a consideração do “Grande Mestre”. Suas atitudes se explicam se pensamos em nossa história política violenta e no caráter da sociedade que construímos. A desconfiança e a suspeita dominam as relações sociais. Todos têm medo da própria sombra e das palavras do outro, consideradas a priori perigosas. Escutar o outro, abrir-se ao outro, é considerado desonroso. Nesse marasmo psicológico geral, os homens no poder são, paradoxalmente, os mais vulneráveis. Eles são os que mais têm a perder e por isso preferem encobrir sua fraqueza com uma agressividade primitiva.
Existem forças de oposição ativas no país?
MONGA: Existe por todo lado no país um imenso estoque de vontade, energia e criatividade. Mas as instituições públicas e privadas não chegam a canalizar essas forças para o bem estar coletivo. Os camaroneses também têm dificuldade de trabalhar coletivamente. Resultado: nossa capacidade de ação é limitada, apesar da profusão de talentos. A verdadeira transformação que devemos buscar é em nós mesmos, em nossa forma de agir e no grau de exigência que estamos dispostos a adotar em nosso cotidiano. Os líderes de oposição precisam sair de seus egos para realizar um trabalho político verdadeiro que permita eleições justas e livres. Só a ação política de base, fundada em ideias novas e críveis e em soluções concretas para os problemas econômicos e sociais do país, pode produzir alternância de poder. Também seria ótimo se a comunidade internacional parasse de menosprezar as demandas de liberdade que vêm de todo canto na África. Quando os cidadãos saem às ruas da Ucrânia, da Geórgia ou do Irã exigindo liberdade, os dirigentes ocidentais escutam. Mas se a mesma coisa acontece em Camarões, Quênia ou Senegal, ninguém em Washington ou Bruxelas presta atenção.
Célestin Monga, natural de Camarões, é economista-chefe e assessor do vice-presidente do Banco Mundial em Washington, D.C. Durante sua carreira de 13 anos no Banco, ele ocupou posições no departamento de pesquisa, incluindo o cargo de economista principal na Europa e na Ásia Central e de gerente da equipe de revisão de políticas.
* Indicação de Darlan dos Santos Gomes.
CÉLESTIN MONGA: A África já está bem integrada econômica e culturalmente com o mundo, mas segundo termos que lhe são desfavoráveis. Um exemplo simples: “Waka waka”, a última canção de sucesso da colombiana Shakira, nada mais é que uma reprise de uma música do grupo camaronês Zangalewa. Shakira e seus produtores na Sony Music ganharam milhões, enquanto os pobres artistas camaroneses que a compuseram apenas ouvem falar dela. Acabo de voltar de uma viagem à China, onde vi indústrias que exploram motivos e padrões desenhados pelas mulheres do Mali para produzir lindos tecidos, que são vendidos ao redor do mundo sem que as africanas lucrem com isso… A questão fundamental é desenvolver uma estratégia de gestão de seus saberes num mundo “globalizado”. Trata-se de se organizar para continuar a par com o mundo, participar ativamente das trocas intelectuais, culturais e econômicas, renovar constantemente sua criatividade preservando seus interesses. É o que o poeta e ex-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001) chamava de “o encontro do doar com o receber”, uma expressão muito bonita. Ninguém pode fazer isso sozinho. Os Estados precisam organizar seus quadros institucionais e regulamentares para esse tipo de coordenação.
Como funcionário do Banco Mundial, acredita na necessidade de auxílio internacional à África? Que tipo de auxílio?
MONGA: Nenhum país em desenvolvimento saiu da pobreza por causa do auxílio ou da caridade internacional. O desenvolvimento é o resultado de um processo endógeno pelo qual os agentes econômicos de um país se organizam para mobilizar os fatores de produção, como a força de trabalho, o capital e os recursos naturais, para criar riqueza e aumentar constantemente a produtividade. O auxílio ao desenvolvimento não pode substituir esse processo interno. Ele pode contribuir, de forma marginal, para a construção de infraestruturas ou o financiamento da educação e dos programas sanitários. Mas ele não pode ser a receita mágica do desenvolvimento. O problema de muitos países africanos é acreditar que o Banco Mundial pode resolver seus problemas por eles. Isso os coloca numa posição de auxiliados permanentes. Acostumar-se ao auxílio é nefasto como todo vício, pois infantiliza e desresponsabiliza.
“Niilismo e negritude” tem passagens críticas sobre a influência da Igreja Católica como “instituição social” em Camarões. Quais são os pontos mais negativos dessa influência?
MONGA: O histórico das igrejas da África é manchado pelos equívocos coloniais e assombrado por sua relação incestuosa com regimes políticos opressivos. Muitos homens e mulheres de igreja fazem um trabalho honorável em prol das populações, desempenhando um papel de assistentes sociais, de mentores, de confidentes e até de psiquiatras. Mas a instituição religiosa na África funciona como as burocracias dos antigos partidos únicos. Muitos de seus membros exploram abusivamente sua posição de “reserva moral” para satisfazer suas fantasias de poder. Outros são paranoicos e veem o mal por todo lado. Prisioneiros de sua amargura e nauseados pela permanência em querelas étnicas microscópicas, eles vivem mal sua vocação e se perguntam por que não são promovidos a “funções importantes”. Recitam as Escrituras e carregam a cruz de Jesus sobre o coração, mas são habitados por uma dose de cólera e maldade que espantaria os personagens menos recomendáveis da Bíblia.
Como sua noção de “niilismo” pode ajudar a pensar a África contemporânea? Que pensadores mais influenciaram seu trabalho?
MONGA: Quis mostrar outras Áfricas, aquelas que invalidam os clichês. Quis compreender a extravagância da bondade em lugares onde se supõe não haver nada além de sofrimento. A esperança é a verdadeira matéria prima e verdadeira riqueza da África, mas se trata de uma esperança niilista, confinada, sensata. O niilismo não é apenas uma “mortal fadiga de viver, uma morna percepção da inutilidade de todo esforço”, como dizia Paul Bourget. Na África, é sobretudo uma celebração do absurdo. Entre meus autores preferidos estão Emil Cioran, Fernando Pessoa, Schopenhauer e Nietzsche. Mas entre minhas influências filosóficas conto também minha avó Mami Madé, uma senhora de quase 90 anos que vive num vilarejo nas montanhas do oeste de Camarões e ainda trabalha dez horas por dia. Também admiro o filósofo camaronês Fabien Eboussi Boulaga, o historiador senegalês Cheikh Anta Diop, o sociólogo camaronês Jean-Marc Ela; os escritores Sony Labou Tansi (Congo), Chekih Hamidou Kane (Senegal), Mongo Beti e Paul Dakeyo (Camarões), entre outros.
Que papel tiveram na sua formação os intelectuais do movimento Negritude (corrente de pensamento que defendia a valorização da cultura negra em países africanos colonizados)?
MONGA: Um papel essencial, mas minha “negritude” não tem nada a ver com a deles. Quando encontrei Aimé Césaire na Martinica, em 1988, disse a ele que era o homem da minha vida, e ele sorriu. A leitura de seu livro de poemas “Caderno de um retorno ao país natal”, aos 15 anos, me ensinou sobre a importância do amor-próprio. Eu o admiro muito. Por outro lado, embora eu considere Léopold Sédar Senghor um grande poeta, era a meu ver um intelectual mediano e um político medíocre. Seus 15 primeiros anos de poder no Senegal foram autoritários, ele nunca conseguiu libertar seu imaginário dos estigmas da colonização francesa. Nasci logo depois da independência de Camarões e cresci sob o autoritarismo do partido único que homens como Senghor haviam teorizado. Por isso me sinto distante dele.
No livro “Um banto em Washington”, que será publicado no Brasil em breve, você narra os episódios que levaram à sua prisão em 1991. Esse tipo de coerção política ainda existe no governo de Paul Biya?
MONGA: Infelizmente, sim. Ainda que as técnicas de autoritarismo estejam um pouco mais sofisticadas, sobretudo contra personalidades de maior destaque, os reflexos são os mesmos. Jornalistas pouco conhecidos, mas que incomodam muito, são intimidados — alguns desaparecem misteriosamente, outros são presos e torturados até a morte nas prisões. O mesmo regime continua no poder. Em agosto, fui a Camarões para a cerimônia fúnebre de Pius Njawe, o jornalista com quem fui julgado em 1991. Ele faleceu num acidente automobilístico durante uma conferência em Washington e sua família me convidou a ler um texto em sua homenagem. Havia cerca de 20 mil pessoas no funeral. No momento em que me levantei para ler, vi correr em minha direção um indivíduo agitado, acompanhado de um soldado. Era o governador local que, agindo em nome de seu presidente, vinha arrancar o microfone de mim. A multidão ficou furiosa e queria linchá-lo. Mas não deixamos que essa cerimônia de luto se transformasse num caos sangrento. Foi lamentável.
Como você vê o regime de Paul Biya hoje?
MONGA: Dizer que o regime é formado por pessoas sem visão nem estratégia seria banal. O mais grave é que a miséria material se transformou em miséria afetiva e psicológica, a tal ponto que cada funcionário regional, sobretudo se afunda sob o peso de um título oficial vazio, se julga constantemente obrigado a se humilhar para merecer a consideração do “Grande Mestre”. Suas atitudes se explicam se pensamos em nossa história política violenta e no caráter da sociedade que construímos. A desconfiança e a suspeita dominam as relações sociais. Todos têm medo da própria sombra e das palavras do outro, consideradas a priori perigosas. Escutar o outro, abrir-se ao outro, é considerado desonroso. Nesse marasmo psicológico geral, os homens no poder são, paradoxalmente, os mais vulneráveis. Eles são os que mais têm a perder e por isso preferem encobrir sua fraqueza com uma agressividade primitiva.
Existem forças de oposição ativas no país?
MONGA: Existe por todo lado no país um imenso estoque de vontade, energia e criatividade. Mas as instituições públicas e privadas não chegam a canalizar essas forças para o bem estar coletivo. Os camaroneses também têm dificuldade de trabalhar coletivamente. Resultado: nossa capacidade de ação é limitada, apesar da profusão de talentos. A verdadeira transformação que devemos buscar é em nós mesmos, em nossa forma de agir e no grau de exigência que estamos dispostos a adotar em nosso cotidiano. Os líderes de oposição precisam sair de seus egos para realizar um trabalho político verdadeiro que permita eleições justas e livres. Só a ação política de base, fundada em ideias novas e críveis e em soluções concretas para os problemas econômicos e sociais do país, pode produzir alternância de poder. Também seria ótimo se a comunidade internacional parasse de menosprezar as demandas de liberdade que vêm de todo canto na África. Quando os cidadãos saem às ruas da Ucrânia, da Geórgia ou do Irã exigindo liberdade, os dirigentes ocidentais escutam. Mas se a mesma coisa acontece em Camarões, Quênia ou Senegal, ninguém em Washington ou Bruxelas presta atenção.
Publicado em O Globo, em 20/11/2010.
Célestin Monga, natural de Camarões, é economista-chefe e assessor do vice-presidente do Banco Mundial em Washington, D.C. Durante sua carreira de 13 anos no Banco, ele ocupou posições no departamento de pesquisa, incluindo o cargo de economista principal na Europa e na Ásia Central e de gerente da equipe de revisão de políticas.
* Indicação de Darlan dos Santos Gomes.
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