O historiador Jacques Le Goff revisita a vida, o tempo e as circunstâncias do Poverello
E se Jesus voltasse? Dostoievski imaginou a cena, no famoso episódio de Os Irmãos Karamazov intitulado "O Grande Inquisidor". Um dia, Jesus aparece em Sevilha, no tempo da Inquisição. Ainda na véspera, 200 hereges haviam sido queimados. A multidão logo reconhece o recém-chegado. Vão lhe abrindo caminho e se ajoelhando. Um cego grita que o cure – e nesse exato momento a luz penetra-lhe as pálpebras. Uma família que vinha enterrar a filhinha pede-lhe que a ressuscite – e ele o faz. A agitação chama a atenção do cardeal, que sai à rua. Ele também reconhece Jesus de imediato – e o que faz? Manda prendê-lo.
Trancafiam-no numa cela. Mais tarde o cardeal vai visitá-lo. Está irritado. Com que propósito, com que direito, essa súbita aparição? "Não tens o direito de acrescentar nada ao que disseste", diz, desfiando o argumento que é o ponto alto da história. "Por que nos vieste perturbar?" E promete que, no dia seguinte mesmo, haverá de levar o intruso à pior das fogueiras. Ele não tinha o direito de acrescentar fosse o que fosse ao que já dissera. E a administração do que dissera não lhe cabia mais.
Dostoievski é ficção. No mundo real, algo próximo da reencarnação de Jesus ocorreu quando, em 1181 ou 1182, na cidade italiana de Assis, veio à luz um certo Francisco Bernardone. Ele não nasceu pobre, como Jesus – era filho de rico comerciante de tecidos. Mas se fez pobre por escolha, e inaugurou a nova vida numa cena teatral em que, tendo de um lado o bispo da cidade e, do outro, seu indignado pai, se despiu até ficar todo nu – "nu como Cristo", disse. Conhece-se, talvez como a de nenhum outro santo, a legenda de São Francisco de Assis. Ele pregava aos passarinhos. Andava com uma simples túnica, na qual amarrava uma corda, à guisa de cinto. Tinha horror a tudo o que era posse ou poder. Beijava os leprosos. Fazia poesias singelas, como o "Cântico do Irmão Sol". Sobretudo, o Poverello, como foi apelidado, tinha como projeto, mais de um milênio depois, retomar o Evangelho em sua literalidade. Foi tão bem-sucedido, na empreitada da imitação de Cristo, que consta ter sido premiado, ao fim da vida, com os estigmas – as mesmas marcas que Jesus recebeu na cruz.
São Francisco de Assis, de Jacques Le Goff (Record, 251 páginas), é um livro para quem quer se aprofundar no conhecimento do personagem-título e da sociedade de seu tempo – sua economia, suas classes sociais e estruturas mentais. O autor, um dos mais eminentes historiadores franceses da atualidade, especialista em Idade Média, já publicara em 1996 na França (e em 1999 no Brasil) um monumental São Luís – biografia de 900 páginas do contemporâneo de São Francisco que, no mesmo ano de 1226 em que este morria, assumia o trono na França, sob o título de Luís IX. Este São Francisco, se coincide com o livro anterior ao debruçar-se sobre o mesmo período histórico e ter um santo como tema, difere, primeiro, pelas proporções mais modestas e, segundo, por não ser uma obra em si, mas uma reunião de quatro textos, escritos em diferentes épocas. Advirta-se que não se trata de leitura fácil. Os dois primeiros textos, dedicados respectivamente à sociedade da época e à biografia do santo, são mais acessíveis. Os dois últimos, "O vocabulário das categorias sociais em São Francisco de Assis e seus biógrafos no século XIII" e "Franciscanismo e modelos culturais do século XIII", situam-se, já se vê pelos títulos, no mundo da alta especialização.
Le Goff, entre outras observações de quem conhece o período com intimidade, mostra como São Francisco transportou para a religião, ele que na juventude viveu entre os ricos, e assimilou-lhes as modas, as fórmulas corteses da cavalaria. A pobreza, ele a chamava de "Senhora Pobreza". Era uma namorada a quem cortejava. O "jogral de Deus", como foi chamado, aproximava-se com cuidados de amante de flores da repulsa como a miséria, a sujeira e a lepra. Às moedas, dizia que não se devia dar mais importância do que às pedras. Tudo o que cheirasse a riqueza e poder lhe merecia aversão. Não gostava de livros, porque eram objetos caros, que só a riqueza podia comprar, e porque traziam conhecimento, algo que leva à superioridade, ou à ilusão da superioridade, e portanto ao poder.
Da perspectiva de hoje, São Francisco estaria entre o hippie e o revolucionário – em qualquer caso, um contestador do sistema. Ele próprio reconhecia-se como, digamos, diferente. "Disse o Senhor para mim que queria que eu fosse um novo louco no mundo", afirmou. Sua face "revolucionária" compreende a decisão de pregar nas praças, junto ao povo, encarando o mundo de frente, bem como escolher os pobres e os simples como modelos. Mas há também, nota Le Goff, uma face "reacionária". Numa época em que a Europa se reencontrava com o conhecimento, e floresciam as universidades, condenou os livros e a ciência. Numa época em que a economia monetária propiciava a passagem do sufoco feudal para a abertura do capitalismo, condenou o dinheiro.
Francisco equilibrou-se a um passo da heresia. Não é certo, como demonstra Le Goff, que quisesse fundar uma ordem. Preferiria uma "fraternidade", uma comunidade de uns poucos, como a de Jesus. Sua insistência em cultivar a pobreza e reviver o Evangelho, numa época em que a Europa se enriquecia e o alto clero mergulhava no luxo, já era, de si, um escândalo. A ojeriza ao poder e às hierarquias piorava-lhe a situação. Ao contrário de outros movimentos contemporâneos com igual dose de contestação, no entanto, o seu não foi anatematizado. O balé de aproximações e distanciamentos em que se constituiu sua relação com a hierarquia católica desembocou em conciliação. Para começar, ele acabou concordando em transformar o movimento numa ordem, o que significava acomodá-lo no seio da Igreja. Ao redigir a Regra da nova ordem, Francisco incluiu itens como a obrigação de pregar, para todos os irmãos, e o direito de desobediência a superiores eclesiásticos, por razões de consciência. Ao passar pelo crivo da Cúria Romana, no entanto, a Regra foi drasticamente modificada. A pregação só poderia ser feita com autorização dos bispos, e o direito de desobediência desapareceu. No capítulo do culto à pobreza, Francisco havia estatuído que, em viagem, os irmãos não levassem bolsa, alforje, dinheiro ou cajado. Depois da intervenção da Cúria, só restou a proibição de ir a cavalo.
Aos poucos, desarmava-se o franciscanismo de sua radicalidade. E, se isso pôde ser desencadeado ainda em vida do santo, depois se tornou muito mais fácil, e célere. A canonização veio logo em 1228, dois anos após a morte, o que sugere a estratégia de, sem perda de tempo, apropriar-se de sua memória e administrar-lhe o culto, em vez de deixá-lo perigosamente solto nas ruas e praças que Francisco tanto percorreu. Mais dois anos e, em 1230, dá-se a "injúria", como diz Le Goff, da majestosa basílica erguida em Assis em louvor do santo – monumento que, até hoje, faz simultaneamente a delícia dos turistas e admiradores da arte e a negação do cultuado. Não demorou igualmente para que o dinheiro fosse aceito na Ordem, salvo para fruição individual, e o estudo e os livros entrassem na rotina dos irmãos.
Fica-se indeciso entre o que mais admirar. Se a empreitada de São Francisco ou a habilidade com que ela foi absorvida e retrabalhada. Se o desafio do santo ou a facilidade com que tal desafio foi desarticulado. O que nos traz de volta ao Grande Inquisidor, que não é citado no livro de Le Goff, nem tem nada a ver com ele, mas que nos serve para formular uma conclusão. Que fogueira, que nada. O poder e a ordem estabelecida têm modos muito mais sutis e eficazes de lidar com o que lhes soa inconveniente.
Publicado na Revista Veja, Edição 1 701 - 23 de maio de 2001
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