quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Quando opinião vira monumento [Cazzo Fontoura]


Tal qual o João Batista, que obsessivamente avisava da chegada do messias, Nelson Rodrigues – este, sim, uma assumida flor de obsessão – passou anos a dizer e enfatizou em muitas de suas crônicas o que, até então, ninguém percebia: a ascensão dos idiotas no mundo. João, subversivo, batizava as pessoas, preparando-as para a vinda do cristo, a contragosto da igreja judaica, que o considerava apenas mais um louco na plebe. Nelson, o mais doce dos nossos reacionários, dizia o óbvio, embora, como ele mesmo proclamava, “somente os profetas enxergam o óbvio”. 

Já em sua época, este emblemático torcedor do Fluminense observava nas entrelinhas o encaminhamento da humanidade: o jornalismo superficial e pouco criativo, a brutalidade das relações amorosas, a vibração das massas diante de um idiota no palanque. Estas três observações do Nelson Rodrigues estão alicerçadas, hoje, no mundo virtual: noticiário, rápido e rasteiro, que desconhece profundidade; lugar-comum ora para o sexo idealizado ora para a grosseria deste mesmo tipo de relação; e espaço convulsivamente democrático para o registro eternizado das opiniões. A internet é o mais moderno e eficiente palanque da idiotice.  

Mas não devemos esquecer que o que chamamos de mundo virtual é mero reflexo do que somos bem de perto. É nas redes sociais que as mais nefastas opiniões ganham contornos de monumento. Isso porque uma vez registrada nossa sentença, a consideramos algo a ser lido, contemplado. E porque está registrada, os que a leem dão muitas vezes demasiada importância, gerando um debate planetário sobre coisas que, noutros tempos, falávamos ao pé do ouvido e, se muito, chegavam ao conhecimento de duas ou três pessoas. 

Dentro daquela máxima que diz: “Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro”, o livro aqui já começa a ser substituído pelos registros nas redes sociais. A diferença é que a brochura – que passa pelo demorado processo de edição, produção, ajustes de colagem –, quando pronta, tende a eternizar o conteúdo que lhe inserimos. Mas, num mundo onde corremos não se sabe pra quê, mais barato, mais eficiente e causa muito impacto nosso medíocre registro num mural de facebook, que, por causa da comunhão idiota que ali fortalecemos, torna-se constante estopim para a produção em série da idiotice, numa desenfreada disputa no intuito de alcançar a estupidez em sua essência. 

Vejamos o caso Micheline Borges. A jornalista que opinou sobre a aparência das médicas cubanas que acabaram de chegar ao Brasil. Independente de considerar o que ela fez questão de registrar uma grande idiotice, é ainda mais agravante perceber que, com essa arma que é o registro imediato e de rápida comunicabilidade, perdemos o pudor. De um cotidiano banho gelado em dia caloroso ao registro fotográfico de uma poça d’água, tudo, absolutamente tudo vira notícia, ganha o relevo de um monumento. 

A declaração explicitada da jornalista potiguar, caso não tivesse sido registrada, em nada mudaria sua impressão, ela continuaria a ver nas profissionais cubanas a inadequada aparência de empregadas domésticas. Como um Boris Casoy no alto de sua arrogância, Micheline Borges desprezou a ineficiente confissão ao pé do ouvido, preferiu proferir sua verdade absoluta, que, via internet, só não chegará a Cuba, China e a alguns países do oriente médio. 

Com o registro monumental nos sentimos arrogantemente convictos do que, num lapso de segundos, consideramos válido registrar e, para nossa desgraça, só nos convencemos a voltar atrás no que escrevemos – se é que voltamos atrás – quando tal constrangimento pode vir a decrescer a possibilidade de status e dinheiro. Para que isso não ocorra, fazemos novos registros, de arrependimento ou de convicção menos consistente.   

Não há dúvida de que sempre tivemos opinião sobre todas as coisas. Até hoje nos utilizamos de instituições para moldar, a partir da nossa, a opinião de outras pessoas. Acontece que o registro virtual ratifica, como nunca antes na história deste planeta, o caráter paralisante de termos opiniões sobre todas as coisas. E assim ficamos cada vez mais distantes do que outro profeta veio nos dizer. Raul Seixas, se estivesse vivo e ainda metamorfose ambulante, seria banido de facebook, twitter e instagram. O palanque de idiotas o denunciaria por “não ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

O vegetarianismo é uma grande bobagem [Cazzo Fontoura]



Ao contemplar uma exposição de carnes num mercadinho de bairro, cheguei à seguinte conclusão: o vegetarianismo é uma grande bobagem. Logo no primeiro instante em que me deparei com aquele varal de bichos mortos – esteticamente bem posicionados, suas cores distribuídas de maneira concisa, combinando com o ladrilho manchado da parede – me peguei surpreendido, constatando o que há algum tempo ouvi o poeta Affonso Romano de Sant’Anna dizer: “Não existe morte. O que existe é vida alimentando vida”. Sim, o sangue que ainda escorria de um volumoso pedaço de boi ali exposto me encheu de vida.

Discussões advindas de experimentações, conclusões científicas quanto aos benefícios ou males da dieta vegetariana são sempre válidas pelo simples fato de que jamais serão absolutamente conclusivas. Adeptos do capim e afins defendem que excluir animais do prato os protege de doenças cardiovasculares ou outras tantas originadas do excesso de gordura. Já os carnívoros convictos usam como principal argumento a ausência do ferro e da vitamina B12, essenciais para a formação das hemácias e da hemoglobina.

O que deve, de fato, ser desprezado é o cientista que defende a ingestão de carnes que tem lá seus compromissos com a inescrupulosa indústria alimentícia – em função de experimentações agressivas à saúde humana, como a inserção de composições químicas para um crescimento mais rápido dos frangos, fazendo-os prontos para o abate em curto espaço de tempo. Mas, fora o discurso contrário à utilização de macacos e ratos como cobaias de testes para curas de doenças em seres humanos – talvez estupradores fossem animais ideais para tal situação –, também costumo dar pouca valia aos defensores da alimentação vegetariana seja por motivações religiosas, seja porque ficam tristes ou indignados com a matança de animais transformada em aperitivo comum nos pratos nossos de cada dia.

Pois bem, afirmar que cachorro tem alma (e o que é mesmo alma?), que papagaios falam (não, eles não falam, apenas reproduzem o que dizemos), que elefantes sentem quando vão morrer, inevitavelmente, não passam de crenças. Há quem creia que um sujeito morreu num dia e três dias depois ressuscitou. Diante disso, acreditar que vinho faz bem ao coração chega a ser, no mínimo, plausível de se acreditar. Mas o que me leva a insultar, com a boca mastigando carne cheia de nervos, o sentimentalismo em prol de vacas, bois, galinhas, frangos, peixes e crustáceos é não entender muito bem em que vacas, bois, galinhas, frangos, peixes e crustáceos são melhores do que micróbios e bactérias sempre presentes entre nós, nas nossas peles, no beijo que nos damos, no aperto de dentro do ônibus, na comida e na bebida que ingerimos? Ou seja, tudo é vida.

Pregar o vegetarianismo como um jeito de se alimentar mais saudável, considerando ingerir carne como o grande vilão da vida humana, é menos estúpido do que inserir neste discurso o sofrimento do porco que será abatido ou a angústia do boi frente ao machado que lhe será cravado à cabeça. Sofrer e angustiar-se, até onde é possível comprovar, são sensações que ocorrem em homens e mulheres. Mas há quem defenda que cachorros sentem saudade. Certo mesmo é que tudo não passa de mera especulação, tão inconclusiva quanto a existência ou não de deus.

E por falar em sagrado, tanto a guerra que travamos com micróbios, bactérias, fungos e vírus quanto a rede abarrotada de peixes arrastada para a beira do mar são eventos essenciais à existência humana, equivalentes à ilusão de consagrarmo-nos sábios pelas nossas escolhas, desprezando, em absoluto, o possível fato de que, em alguma medida, não passamos de meros seres ignorantes de nossa ínfima contribuição no único e inevitável ciclo: nascer e morrer em favor da vida.