segunda-feira, 18 de março de 2013

Habemus Nadam [Marcelo Carneiro da Cunha]



Estimados leitores, incrível, mas a igreja católica foi lá e fez de novo. Juntou 150 senhores idosos e escolheu um deles com a difícil missão de não mudar absolutamente nada e parecer que alguma coisa está acontecendo.

Como todos vocês eu me diverti vendo aquela queima de papeizinhos e a fumaça saindo da chaminé, até ela ficar menos cinza e então um outro senhor bem velhinho vir dizer Habemus Papam, e aparecer aquele senhor com jeito de quem aprecia muito um sonrisal pra acompanhar as carnes. O novo papa, Francisco. O novo papa acredita no poder da oração, senhores leitores. Oração.

 A igreja existe há dois mil anos e um troco, e por todo esse tempo ela vem praticando a oração, antes em latim, agora em vernáculo, e os resultados têm sido igualmente impressionantes. 

O mundo orava enquanto Roma era saqueada pelos bárbaros, e nenhum bárbaro, ao que se saiba, desistiu do projeto de invadir a capital da cristandade e se tornar um sujeito bonzinho ali e agora. Papas oravam enquanto tentavam invadir algum reino que estivesse incomodando, e a Itália permaneceu dividida até Garibaldi ir lá e fazer algo prático a respeito.

Todo mundo orava quando aparecia a peste, vinda do oriente selvagem, com uma enorme taxa de sucesso, uma vez que apenas seis pessoas em dez morriam. Aparentemente, somente as outras quatro sabiam a letra certa da reza salvadora, ou eram cristãos bons o bastante para merecerem escapar do trágico destino bubônico. Curiosamente, monastérios inteiros desapareceram junto, orando o tempo todo, ao que se imagina.

O mundo somente começou a mudar pelo século 16, estimados leitores, quando a parte da humanidade cansou de morrer de praticamente tudo e inventou a ciência. 
A igreja gostou tanto da ideia que queimou vários cientistas por ousarem fazer algo tão pouco divino quanto pensar. Uma boa oração resolvia tão bem, separando os bons dos maus, pra que virem agora com essa tolice igualadora, que salvaria a todos os vacinados da mesma maneira, inclusive os que praticassem outras religiões ou nenhuma?

No ocidente, por uma série de sortes, conseguimos impor o pensamento à fé, e a ciência à oração, e provavelmente é por isso que o nosso novo e estimado Papa sobrevive com apenas um pulmão. Se humanos não tivessem parado com bobagens e não tivessem ido lá fora inventar a assepsia, os instrumentos cirúrgicos, a anestesia e a medicina moderna, eu acredito que ele poderia ter orado em vão.

Por séculos oramos para todo o lado e a nossa média de vida não superou os quarenta anos de idade. No último século, sem nenhuma reza, pulamos para os oitenta anos em média, mulheres um pouco mais, homens um pouco menos. O que produziu essa revolução, uma vez que quantidade de vida é certamente um fator essencial na vida, não foi a oração, jamais seria, jamais será. E o novo papa acredita nela, apesar do pulmão.

Ele acredita nela por que ela é a única coisa que o sistema que ele representa tem a oferecer. Mágica, dragões, são jorges, lendas, crendices, e muita fumaça. Ele acredita nela porque se todo mundo resolver deixar de acreditar, babaus para a empresa dele, que fatura alguns 170 bilhões de dólares nos Estados Unidos, apenas. Ele acredita que mesmo que a humanidade não tenha sido beneficiada com dois mil anos de orações, a igreja certamente sobrevive, e muito bem, graças a ela. Portanto, oração funciona. E funciona. Para a igreja e seus empregados, por exemplo, funciona muito bem.

Curiosamente, no primeiro dia de trabalho do novo papa foi lançado o novo smartphone Android da Samsung. Daqui a pouco vem a versão nova do Iphone, da Apple. Curiosamente, no mesmo dia foi anunciado que já são ativados mais smartphones Android do que nascem bebês humanos, por dia. Deixando de lado o que não funciona, estamos apostando fortemente no que sabemos que funciona, parece. O Manuel Carneiro da Cunha, nos seus 16 meses de idade, passa o dedo sobre toda e qualquer superfície e espera que alguma coisa aconteça, o que não deixa de representar a nova fé humana do século 21.

Diferentemente da outra fé, aquela da reza pro Padinho Padi Ciço torcendo pela chuva que não vem, essa nova fé entrega, mesmo que nem sempre a entrega faça muito sentido ou tenha muita utilidade. Essa nova fé, ora vejam, é mais ou menos como a gente. Ela é isso mesmo porque foi, sem sombra de dúvidas, criada por nós e atua a nosso favor. Se somos um tanto erráticos, é por nossa conta.  A oração antiga era errática porque nunca sabíamos de que lado Deus estava, na guerra ou no futebol.

A nova oração está ao nosso lado, e por isso mesmo, mesmo quando não funciona, funciona. Sorte a nossa, azar do Francisco, que vai continuar naquele balcão dizendo que os gays são a causa de todo o mal e que o mundo é torto por falta, não excesso de Deus.  Quem sabe na hora em que o mundo inteiro for Android ou Apple, essa sua tese vai parecer cada vez mais distante, cada vez mais estranha, e finalmente, cada vez mais uma lembrança.

segunda-feira, 11 de março de 2013

A matança dos inocentes [José Ângelo Gaiarsa]



Jeová não deve ser muito amigo de crianças. Creio, mesmo, em uma secreta cumplicidade entre Ele e Herodes, aquele que mandou matar todas as crianças com menos de dois anos quando lhe disseram que havia nascido um Grande Rei que o superaria.

Na Psicanálise de Freud o "infantil" em nós é mal visto e mal falado, sinônimo de neurótico, regressivo, irracional, imaturo e mais palavrões similares.

Chamar de "criança" ou "infantil" a pessoas adultas é ofensa universal, significando, em paralelo com Freud, irresponsável, ignorante, bobo.

No entanto, a criança, tanto a de verdade como a que sobrevive em nós, é a semente do possível - é o que pode se desenvolver, a promessa de tudo o que ainda não somos, mas poderemos vir a ser.

O "adulto" ou a "Personalidade Madura" - como diz Giovanni Papini - é um "homem acabado"; acabado, isto é, sem futuro, sem novidade, é alguém que já deu tudo o que tinha a dar - algo esgotado.

A criança interior funciona em nós, como o broto terminal nas plantas - a zona de crescimento contínuo.

A criança interior é, pois, muito importante e convém cultivá-la e ouvi-la, por mais tolas que suas manifestações possam parecer (para os adultos!).

A criança - tanto a de verdade como a interior - é o futuro no pressente.

A criança interior - em nós - responde por tudo o que dizemos de nós para nós mesmos: "que bobagem", "imagine!", "a gente pensa cada uma!"

Nossas bobagens são muito importantes para nós e mais vezes sim do que não será necessário vivê-las - ou nos esterilizamos em uma rotina vazia - no tédio do sempre igual.

Ai do adulto que nunca é criança!

A criança ainda não sabe distinguir o que é importante - aos olhos dos adultos. Ela ainda acha que aquilo que acontece uma só vez pode ser mais importante do que acontece muitas vezes.

Morrer, por exemplo.

Ela acha que o imprevisível é tão importante quanto o costumeiro - é até mais atraente (e assustador!). Chega ao cúmulo de considerar existentes as coisas sem lógica e de dar a essas coisas absurdas o mesmo valor dado às coisas sérias e razoáveis (para o adulto).

A criança é muito incômoda. Vive fazendo com que o adulto duvide de todas as suas verdades.

Muito mais fácil dizer "coisas de criança são bobagens".

A criança dá valores iguais ao contingente e ao necessário, leva igualmente a sério o transitório e o eterno, presta a mesma atenção ao universal e ao individual (até mais a este do que àquele).

Já se viu quantos despropósitos? Como é possível dar atenção às crianças?

Criança só pode mesmo dizer tolices e só pode mesmo ser ignorante - porque se ela não fosse, viria abaixo todo o fantástico mundo das certezas dos adultos.